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Itália vota como uma doente política
Sistema partidário anacrônico, burocracia excessiva e superprivilégios da classe governante mortificam o eleitorado
Irritado com "imoralidade organizada", país elege hoje e amanhã seu 56º governo desde 1948; no páreo estão Berlusconi e Walter Veltroni
Ciro Fusco/Efe
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Veltroni (à esq.) e Berlusconi segundo o artista Genny Di Virgilio
CLÓVIS ROSSI
COLUNISTA DA FOLHA
A Itália que vota hoje e amanhã para escolher seu novo governo -o 56º em 60 anos desde
a Constituição de 1948- é um
país doente, politicamente falando.
"A Itália é uma república parlamentar débil. É débil o presidente do Conselho de Ministros [primeiro-ministro], que
pode pouco ou nada no confronto com seus ministros. Há
um bicameralismo redundante, com duas Casas (Câmara e
Senado) paritárias, tanto em
termos de funções como de base de representação, que tornam todos os processos decisórios mais longos e complexos", depõe, por exemplo, Pietro Grilli Di Cortona Rossi, professor
de Ciência Política na Universidade Roma-3 e autor de "A mudança política na Itália", lançado em 2007.
Essa doença irrita de tal forma o público que um grupo de
leigos católicos, normalmente
empenhados na participação
popular na vida pública, lançou
manifesto defendendo exatamente o contrário: o voto nulo.
O texto diz que "qualquer escolha [de candidato] seria funcional ao sistema de oligarquia
hereditária que é a política na
Itália". Rejeitam até votar com
"o nariz tapado e os olhos fechados", porque seria um "voto
cúmplice". Mesmo na hierarquia católica, a linguagem é de
inusual dureza: Carlo Liberati,
arcebispo de Pompéia, define a
classe política como "imoralidade organizada".
Casta privilegiada
Oreste Massari, professor de
Ciência Política de "La Sapienza", a Universidade de Roma
que é uma espécie de Sorbonne
italiana, troca "imoralidade organizada" por "casta". Diz:
"A classe política italiana é
efetivamente uma casta, pelos
enormes privilégios de que goza, sem paralelo algum com as
classes políticas dos países europeus. Basta lembrar que os
políticos italianos são os mais
bem pagos do mundo (enquanto os salários da população em
geral são os mais baixos da
União Européia). Além disso, o
número de membros da classe
política é enorme (calcula-se
que 500 mil pessoas vivam da
política, com evidente repercussão nas contas públicas)".
Na verdade, Portugal paga salários inferiores aos da Itália.
Massari vai além: "O sistema
político-institucional não está
em condições de decidir, de
inovar, de modernizar-se porque é bloqueado ou por procedimentos bizantinos ou por
uma plêiade de outros atores
dotados de poder de veto (os
próprios partidos, além de vários níveis institucionais, prefeituras, Províncias, regiões)".
Entre os outros "atores com
poder de veto", também os sindicatos ganharam o rótulo de
"casta". Ao menos é o título de
um livro recém-lançado ("L'altra casta", de Stefano Livadiotti, da revista "L'Espresso").
O livro define os sindicatos
italianos como "máquinas de
poder e dinheiro". E ilustra o
poder de bloqueio citado por
Massari com o fato de que, em
2007, a menor das 13 siglas sindicais que atuam no setor da
aviação, com apenas cinco filiados, conseguiu fazer cancelar
320 vôos em um único dia.
No jornalismo, a "doença"
também é atacada com vigor.
Escreve, por exemplo, Eugenio
Scalfari, fundador do jornal "La
Repubblica" e hoje seu principal colunista, um ícone da mídia italiana: "A classe dirigente
vive ainda agarrada ao totem do
nacionalismo econômico, do
assistencialismo, da troca de favores entre negócios e política,
do direito de veto em mãos de
corporações e lobbies".
Até entre empresários, a
doença causa incômodo, ainda
que seja tratada com o cuidado
inevitável por quem ocupa um
dos lados da "troca de favores
entre negócios e política".
De todo modo, diz Santo Versace, presidente da empresa
que leva seu sobrenome, uma
grife do "made in Italy": "O que
deveríamos pedir a nossos políticos, na direita ou na esquerda,
é que mudem a estrutura da política. Eles precisam ter o bem
comum em suas mentes e não
apenas seu próprio bem".
Megacoalizões
A eleição de hoje e amanhã
(votação em dois dias é outra
esquisitice) muda algo?
Sim e não. Sim porque, mesmo antes dela, o mundo político deu-se conta de que é inviável o bizantino sistema de megacoligações, formadas sempre
por mais de 10 partidos, como
mínimo, que travavam uma
guerra interna uma vez instalados no governo.
Diz o professor Massari:
"Agora, os dois principais partidos (Povo da Liberdade, liderado por Silvio Berlusconi, centro-direita, e Partido Democrático, de Walter Veltroni, centro-esquerda) decidiram correr
sozinhos ou quase, apontando
para a construção de partidos
com vocação majoritária, os
únicos que podem sustentar a
governabilidade".
De fato, o governo Romano
Prodi, o mais recente, caiu porque perdeu o apoio da Udeur
(União dos Democratas pela
Europa), micropartido de 1,5%
dos votos, cujo representante
no governo, Clemente Mastella, foi obrigado a renunciar ao
Ministério da Justiça sob acusações de corrupção.
Agora, o PD de Veltroni concorre coligado apenas com o
Itália dos Valores, partido formado pelo ex-juiz Antonio di
Pietro, um dos responsáveis
pela operação Mãos Limpas, do
início dos anos 90, que varreu
do mapa os partidos de então.
O PD deixou de lado toda a
esquerda -inclusive a Refundação Comunista, a mais moderada de todas, agora aliada
apenas aos "verdes" na lista Sinistra Arcobaleno (esquerda
arco-íris).
Berlusconi, por sua vez, está
coligado somente à pós-fascista
"Aliança Nacional" e, parcialmente, com a Liga Norte, grupo
xenófobo que prega a independência de uma pedaço grande
do rico Norte italiano, para formar a República da Padania.
Em tese, portanto, haverá
desta vez uma maioria mais estável, até porque a lei eleitoral
prevê um "prêmio" de maioria
que assegura ao partido mais
votado 55% das cadeiras da Câmara. Mas, no Senado, a tendência é pela repetição do virtual empate ocorrido dois anos
atrás. O Senado tem poder de
veto e pode desestabilizar qualquer governo.
O risco de que a eleição não
elimine a "doença" é grande,
portanto.
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