São Paulo, domingo, 13 de abril de 2008

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Itália vota como uma doente política

Sistema partidário anacrônico, burocracia excessiva e superprivilégios da classe governante mortificam o eleitorado

Irritado com "imoralidade organizada", país elege hoje e amanhã seu 56º governo desde 1948; no páreo estão Berlusconi e Walter Veltroni


Ciro Fusco/Efe
Veltroni (à esq.) e Berlusconi segundo o artista Genny Di Virgilio

CLÓVIS ROSSI

COLUNISTA DA FOLHA

A Itália que vota hoje e amanhã para escolher seu novo governo -o 56º em 60 anos desde a Constituição de 1948- é um país doente, politicamente falando.
"A Itália é uma república parlamentar débil. É débil o presidente do Conselho de Ministros [primeiro-ministro], que pode pouco ou nada no confronto com seus ministros. Há um bicameralismo redundante, com duas Casas (Câmara e Senado) paritárias, tanto em termos de funções como de base de representação, que tornam todos os processos decisórios mais longos e complexos", depõe, por exemplo, Pietro Grilli Di Cortona Rossi, professor de Ciência Política na Universidade Roma-3 e autor de "A mudança política na Itália", lançado em 2007.
Essa doença irrita de tal forma o público que um grupo de leigos católicos, normalmente empenhados na participação popular na vida pública, lançou manifesto defendendo exatamente o contrário: o voto nulo.
O texto diz que "qualquer escolha [de candidato] seria funcional ao sistema de oligarquia hereditária que é a política na Itália". Rejeitam até votar com "o nariz tapado e os olhos fechados", porque seria um "voto cúmplice". Mesmo na hierarquia católica, a linguagem é de inusual dureza: Carlo Liberati, arcebispo de Pompéia, define a classe política como "imoralidade organizada".

Casta privilegiada
Oreste Massari, professor de Ciência Política de "La Sapienza", a Universidade de Roma que é uma espécie de Sorbonne italiana, troca "imoralidade organizada" por "casta". Diz:
"A classe política italiana é efetivamente uma casta, pelos enormes privilégios de que goza, sem paralelo algum com as classes políticas dos países europeus. Basta lembrar que os políticos italianos são os mais bem pagos do mundo (enquanto os salários da população em geral são os mais baixos da União Européia). Além disso, o número de membros da classe política é enorme (calcula-se que 500 mil pessoas vivam da política, com evidente repercussão nas contas públicas)". Na verdade, Portugal paga salários inferiores aos da Itália.
Massari vai além: "O sistema político-institucional não está em condições de decidir, de inovar, de modernizar-se porque é bloqueado ou por procedimentos bizantinos ou por uma plêiade de outros atores dotados de poder de veto (os próprios partidos, além de vários níveis institucionais, prefeituras, Províncias, regiões)".
Entre os outros "atores com poder de veto", também os sindicatos ganharam o rótulo de "casta". Ao menos é o título de um livro recém-lançado ("L'altra casta", de Stefano Livadiotti, da revista "L'Espresso").
O livro define os sindicatos italianos como "máquinas de poder e dinheiro". E ilustra o poder de bloqueio citado por Massari com o fato de que, em 2007, a menor das 13 siglas sindicais que atuam no setor da aviação, com apenas cinco filiados, conseguiu fazer cancelar 320 vôos em um único dia.
No jornalismo, a "doença" também é atacada com vigor. Escreve, por exemplo, Eugenio Scalfari, fundador do jornal "La Repubblica" e hoje seu principal colunista, um ícone da mídia italiana: "A classe dirigente vive ainda agarrada ao totem do nacionalismo econômico, do assistencialismo, da troca de favores entre negócios e política, do direito de veto em mãos de corporações e lobbies".
Até entre empresários, a doença causa incômodo, ainda que seja tratada com o cuidado inevitável por quem ocupa um dos lados da "troca de favores entre negócios e política".
De todo modo, diz Santo Versace, presidente da empresa que leva seu sobrenome, uma grife do "made in Italy": "O que deveríamos pedir a nossos políticos, na direita ou na esquerda, é que mudem a estrutura da política. Eles precisam ter o bem comum em suas mentes e não apenas seu próprio bem".

Megacoalizões
A eleição de hoje e amanhã (votação em dois dias é outra esquisitice) muda algo?
Sim e não. Sim porque, mesmo antes dela, o mundo político deu-se conta de que é inviável o bizantino sistema de megacoligações, formadas sempre por mais de 10 partidos, como mínimo, que travavam uma guerra interna uma vez instalados no governo.
Diz o professor Massari: "Agora, os dois principais partidos (Povo da Liberdade, liderado por Silvio Berlusconi, centro-direita, e Partido Democrático, de Walter Veltroni, centro-esquerda) decidiram correr sozinhos ou quase, apontando para a construção de partidos com vocação majoritária, os únicos que podem sustentar a governabilidade".
De fato, o governo Romano Prodi, o mais recente, caiu porque perdeu o apoio da Udeur (União dos Democratas pela Europa), micropartido de 1,5% dos votos, cujo representante no governo, Clemente Mastella, foi obrigado a renunciar ao Ministério da Justiça sob acusações de corrupção.
Agora, o PD de Veltroni concorre coligado apenas com o Itália dos Valores, partido formado pelo ex-juiz Antonio di Pietro, um dos responsáveis pela operação Mãos Limpas, do início dos anos 90, que varreu do mapa os partidos de então.
O PD deixou de lado toda a esquerda -inclusive a Refundação Comunista, a mais moderada de todas, agora aliada apenas aos "verdes" na lista Sinistra Arcobaleno (esquerda arco-íris).
Berlusconi, por sua vez, está coligado somente à pós-fascista "Aliança Nacional" e, parcialmente, com a Liga Norte, grupo xenófobo que prega a independência de uma pedaço grande do rico Norte italiano, para formar a República da Padania.
Em tese, portanto, haverá desta vez uma maioria mais estável, até porque a lei eleitoral prevê um "prêmio" de maioria que assegura ao partido mais votado 55% das cadeiras da Câmara. Mas, no Senado, a tendência é pela repetição do virtual empate ocorrido dois anos atrás. O Senado tem poder de veto e pode desestabilizar qualquer governo.
O risco de que a eleição não elimine a "doença" é grande, portanto.


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