São Paulo, domingo, 13 de agosto de 2006

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Regime de Cuba não mudará, diz Morais

Para o escritor brasileiro amigo de Fidel, raiz popular e armas perpetuam revolução e impedem transição capitalista

Autor de "A Ilha" duvida que EUA consigam interferir na sucessão do cubano, que, apesar da saúde abalada, completa hoje 80 anos


SYLVIA COLOMBO
DA REPORTAGEM LOCAL

"O tigre sentiu o gosto de sangue, jamais vai querer voltar a ser vegetariano." Para o jornalista Fernando Morais, 60, o processo de transição para o capitalismo em Cuba ainda não começou. E nem vai começar.
Autor do livro-reportagem "A Ilha" (Companhia das Letras), relato entusiasmado sobre as conquistas da Revolução, best-seller à época do seu lançamento, há 30 anos, e amigo de Fidel Castro, Morais agarra-se aos argumentos tradicionais de defesa do regime sem piscar.
E acha que, se os EUA tentarem intervir após a morte de Fidel, outro episódio como o da Baía dos Porcos -quando os cubanos derrotaram tropas financiadas pelos norte-americanos na batalha de Playa Girón, em 1961- poderá ter lugar.
O ditador cubano completa hoje 80 anos. As festividades que estavam planejadas foram adiadas para dezembro no mesmo comunicado em que ele anunciou, há 13 dias, que seria operado por causa de um sangramento no intestino. Em Maresias, onde trabalha na biografia do escritor Paulo Coelho, Morais recebeu a Folha para falar de Cuba, com e sem Fidel. A seguir, os principais trechos da entrevista.

 

FOLHA - O que o senhor acha que vai acontecer quando Fidel morrer?
MORAIS -
Não sei. Mas tenho certeza do que não vai acontecer. Não haverá transição para outro tipo de sistema. Há um vício de associar a Revolução Cubana aos antigos regimes da Europa do Leste, os chamados satélites da União Soviética. E não tem nada a ver uma coisa com a outra. Essa visão equivocada do que seria a Revolução Cubana levou as pessoas a acharem que, com o fim da União Soviética, o regime cubano acabaria. Não acabou.

FOLHA - Por que não?
MORAIS -
Porque em Cuba a revolução foi feita pelo povo. É evidente que não é a sociedade ideal. Mas há um símbolo que gosto de citar e que responde às dúvidas da maioria das pessoas sobre por que esse regime sobrevive há tanto tempo. É uma placa na saída de Havana que diz: "Hoje à noite, 500 milhões de crianças vão dormir na rua. Nenhuma delas é cubana". Aí as pessoas dizem: "Ah, mas o preço é muito alto". É, sim. Mas, daqui a 200 anos, Cuba será lembrada por ter sido o primeiro país pobre deste continente a acabar com a miséria e por ter sido o país que durante mais tempo sobreviveu às agressões dos EUA. Essas coisas estão relacionadas.

FOLHA - Como assim?
MORAIS -
Cuba só conseguiu acabar com a miséria porque tem uma população armada. Por que não derrubam Fidel se todo mundo com mais de 16 anos lá tem uma arma de fogo? E se é uma população organizada? Não derrubam porque o regime é uma construção tijolo a tijolo que não foi feita de cima para baixo. Não é preciso muito sociologismo para entender, pois há conquistas objetivas. Os índices de desenvolvimento humano superam os de alguns Estados americanos. E Cuba não é nada. É o PIB da Daslu.

FOLHA - Os EUA subestimam a vontade do povo de manter o regime?
MORAIS -
Subestimam. E é por terem memória curta. Em 1961, [o presidente John] Kennedy armou, financiou e patrocinou os mercenários cubanos para derrubarem Fidel. Em 72 horas foram escorraçados, pois a população os derrotou. Quem tinha arma levava, quem não tinha levava taco de beisebol.

FOLHA - Então você acha que, se os EUA interferirem na transição, pode ocorrer uma nova Baía dos Porcos?
MORAIS -
Sim, vão ter que matar todo mundo. Vão ter que acabar com os 11 milhões de cubanos. E não só porque eles vão defender o regime. Isso está na história de Cuba. Vem do tempo dos espanhóis. A rebeldia e a insubmissão dos cubanos é célebre. Eu não tenho preocupação. Lá não é Moscou. Não vai acontecer a mesma coisa.

FOLHA - Uma questão clássica: por que, para garantir as tais conquistas, o regime tem de ser tão fechado?
MORAIS -
Não é bem assim. Não é porque deu comida e deu escola para todo mundo que precisa tirar a liberdade. Mas sim pelo fato de ter dado tudo isso enquanto se está em guerra.

FOLHA - E Cuba está em guerra?
MORAIS -
Há 50 anos está em guerra com os EUA. Se você chegar hoje no Iraque e disser que quer montar um jornal contra a ocupação americana, vão deixar? É a mesma coisa. A responsabilidade pelo fato de o regime ser fechado é a sucessão de agressividades dos EUA contra Cuba, desde sabotagem de colheitas a leis destinadas a desarticular a economia cubana.

FOLHA - Isso é guerra?
MORAIS -
Sim, e o que está acontecendo com a notícia da doença do Fidel é a melhor prova. Imagine se, quando Tancredo Neves fez a cirurgia, o presidente dos EUA dissesse: "Estamos preparando aqui em Washington a transição, e o próximo presidente não pode ser o vice, Sarney. Vocês brasileiros vão decidir, mas só não vai poder ser o Sarney". Em qualquer lugar, se algo assim acontecesse, as pessoas iam sair para a rua e dizer que não. Não iam?


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