São Paulo, domingo, 13 de setembro de 2009

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Desprezo norteia crise entre Cristina e mídia

Ressentimento da presidente da Argentina com órgãos de imprensa remete ao governo do marido, Néstor Kirchner

Desconfiança mútua chega ao auge após visita-surpresa da Receita Federal à sede do "Clarín", com quem Cristina trava disputa sobre nova lei

Grupo44 - 28.jun.2009/Getty Images
A presidente da Argentina, Cristina Kirchner, concede rara entrevista coletiva após votar nas eleições legislativas de 28 de junho

SILVANA ARANTES
DE BUENOS AIRES

"Antes eles terão de passar por cima do meu cadáver!". Com essa frase, Cristina Kirchner prometeu ao seu marido, Néstor Kirchner, que manteria os jornalistas longe dele.
Repórteres, fotógrafos e cinegrafistas tentavam ter acesso ao hospital onde Kirchner, que era o presidente da República naquele ano de 2004, havia sido operado às pressas, após crise hemorrágica. Ele pediu que a mulher não o deixasse ser flagrado em condições tão frágeis.
Vem sobretudo desse episódio o desprezo e o ressentimento de Cristina pela imprensa.
Na última quinta, 200 fiscais da Receita inspecionaram a sede do jornal "Clarín", o maior da Argentina, que hoje tem uma relação conturbada com os Kirchner. Anteontem, o governo negou ter ordenado a blitz, e a mandatária disse preferir ouvir "bilhões de mentiras a ser responsável por fechar a boca de alguém".
Contudo, ela julga vulgar, e às vezes cruel, o interesse jornalístico por todos os aspectos da vida dos governantes. Ao menos é o relato que fez à sua biógrafa Olga Wornat, registrado no livro "Reina Cristina" (Rainha Cristina, editora Planeta).
Há outro aspecto que torna a hoje presidente argentina avessa ao contato com os jornalistas. Como Wornat deixa claro, Cristina menospreza e não hesita em humilhar interlocutores que acha medíocres.
Um indício de que considera os jornalistas assim Cristina deu na semana passada, quando abordada pelo "CQC" (programa argentino que originou a versão da TV brasileira).
O repórter citou suposto desejo do casal Kirchner de se "perpetuar no poder". Ela reagiu dizendo: "Perpetuar-se no poder com o voto popular?! Atenção! Jornalistas têm de pensar antes de perguntar".
Ele não desistiu: "Penso muitas coisas. Agora, por exemplo, estou pensando em 50 causas [número estimado de processos de suspeita de corrupção e enriquecimento ilícito no governo Kirchner]". Ela se retirou, desafiando: "Comprove!".
A indiferença do poder político pelos meios de comunicação no governo Cristina Kirchner é definida como "preocupante" pela Sociedade Interamericana de Imprensa.
Mas a Casa Rosada nunca foi sensível à crítica de que, ao não falar com a imprensa, a presidente termina por dificultar o acesso a informações, além de dar um sinal de desprezo a uma instituição democrática.
Um ex-ministro do governo Cristina Kirchner afirmou na semana passada a um grupo de jornais, entre eles a Folha, que o fato de o chefe de gabinete da Presidência da República pronunciar-se diariamente sobre questões do governo é considerado na Casa Rosada mais do que suficiente para prover informações à imprensa e respeitá-la em sua devida medida.
Embora não dê entrevistas, ela é presença constante no rádio e na TV, já que a maioria dos atos em que discursa é transmitida nacionalmente.
Desde seu ingresso na política, Cristina é considerada uma oradora muito hábil. Ela mantém o hábito de falar de improviso e modula o discurso de acordo com o perfil da plateia.
A um auditório formal, adota tom sóbrio. Com populares, sobe a voz e a emoção. "Sozinha eu não posso. Mas quando vocês me dão um beijo, um aceno, me dão carinho, é como se me injetassem quilos de força. Peçam a Deus todas as noites que me faça mais inteligente, melhor e mais comprometida com o povo", disse, ao inaugurar uma obra para hidratação de água num município pobre de Buenos Aires, no último dia 24.
Três dias depois, na Bolsa de Comércio, desenhou de si uma imagem provavelmente oposta à que os empresários de terno escuro à sua frente têm dela. "Não sou mulher de aceitar desafios. E não por ser mulher."
Por mais que tente matizar a imagem, Cristina é vista com desconfiança na imprensa e no meio empresarial. Seu projeto de Lei de Serviços Audiovisuais enviado ao Congresso suscitou questionamentos a seu apreço pela democracia, apesar de ela ter lutado contra a ditadura.
O governo diz visar o fim de monopólios e ampliar a democracia, garantindo a exploração de meios de comunicação de massa a setores sem interesse comercial, como igrejas, universidades, ONGs e sindicatos.
A oposição enxerga em artigos como o que determina a revisão das concessões a cada dois anos um mal disfarçado propósito de controlar os meios de comunicação.


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