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ENTREVISTA
No Rio, filósofo italiano Toni Negri diz que ação dos EUA no Oriente Médio visa a dominar fontes de energia da Europa
"Bush atacou Iraque para controlar UE"
CLAUDIA ANTUNES
FERNANDA DA ESCÓSSIA
DA SUCURSAL DO RIO
Um dos gurus do movimento
antiglobalização, o filósofo italiano Antonio (Toni) Negri diz não
ver muita diferença entre o ator
Arnold Schwarzenegger, eleito
governador da Califórnia, o presidente russo, Vladimir Putin, o
norte-americano, George W.
Bush, ou o premiê italiano, Silvio
Berlusconi.
Para Negri, 70, Schwarzenegger
não é "um escândalo em particular", mas resultado, como os demais, do monopólio da comunicação e da crise da representação
política tradicional.
Negri é autor, junto com o americano Michael Hardt, de "Império", que vê na resistência supranacional a única maneira de mudar as bases da globalização, e
prepara "Império 2". Esta é a primeira viagem ao Brasil do filósofo, em liberdade depois de cumprir pena pelo sequestro e morte,
em 1978, do líder democrata-cristão Aldo Moro. No livro "De Retour", ele afirma que nunca participou de atentados.
O filósofo ficou quatro anos em
prisão de alta segurança. Em 1983,
fugiu para a França, onde se exilou até 1997. Voltou para a Itália,
segundo diz, por causa de uma
"desilusão amorosa". Foi preso
novamente e agora está livre, com
seu passaporte de volta.
Negri faz hoje no Rio a conferência "As Multidões e o Império", em evento do Ministério da
Cultura e pela Universidade Nômade, que reúne intelectuais do
Rio e de São Paulo. No evento, será lançada a revista "Global". Ele
fará também duas palestras em
São Paulo nesta semana.
Amante do futebol, torce para o
Milan. "É o mesmo time de Berlusconi. Mas quando a gente é torcedor, suporta tudo", disse, em
entrevista à Folha.
Folha - Qual é sua opinião sobre o
governo Lula?
Antonio Negri - Não posso entrar
no debate político interno do Brasil, não sou um conhecedor. Do
ponto de vista internacional, Lula
e a política externa brasileira tornaram-se muito importantes. É
extremamente evidente a presença de Lula na crise do período pré-Iraque. Foi a primeira vez que um
país do sul da América teve um
papel importante na cena internacional.
Folha - O senhor já disse que a
guerra dos EUA contra o Iraque foi
um pretexto para atacar a Europa.
Por quê?
Negri - É uma longa história. Começa nos anos 70, quando a Europa, pela primeira vez, se aproxima
no campo político de uma reorganização interna independente da
Otan [a aliança militar com os
EUA]. Isso coincide com a primeira crise do petróleo, em 1973.
A Europa é dependente, em
energia, do Oriente Médio. O que
se passa lá é vital para a Europa.
Desde que a União Européia progrediu, a luta americana contra a
unidade européia tornou-se mais
forte. A intervenção estratégica
dos EUA no Oriente Médio tem
como um de seus elementos fundamentais o controle da Europa e
dos recursos energéticos.
Folha - O senhor mencionou a posição brasileira sobre o Iraque, próxima da de países europeus como
França e Alemanha. Mas, na reunião da Organização Mundial do
Comércio, em Cancún, os EUA se
aliaram à Europa em defesa do protecionismo agrícola. Como o senhor vê essa diferença?
Negri - A globalização é um processo que avança e deve avançar.
Sou contrário à proteção européia
ao mercado agrícola. Mas em
Cancún passou-se algo mais importante, o bloqueio a novas privatizações e a novos processos
neoliberais. A privatização dos
bens comuns foi bloqueada
[quando os países pobres rejeitaram a liberalização dos serviços,
incluindo a educação, e as regras
de investimentos propostas pelos
ricos]. Isso, sim, é importante,
muito mais do que a questão agrícola -que deverá ser resolvida
mais cedo ou mais tarde.
Folha - O senhor vê, na invasão do
Iraque -contra a opinião pública
mundial e a ONU- o retrato de um
poder sem igual na história?
Negri - É verdade que o poderio
militar dos EUA é extraordinário,
mas não creio que ele seja suficiente. Hoje os EUA não têm
meios para manter a ocupação do
Iraque nem, em geral, as políticas
contra o terrorismo, entre aspas,
tal como começaram. Esse poder
militar monárquico é condicionado pelo poderio econômico.
Folha - O que acha das previsões
de queda do império americano?
Negri - Não penso que exista
uma queda do império americano, porque não penso que haja
queda do império de ninguém.
Talvez seja verdadeiro que o auge
do poder americano já passou, foi
a fase dos anos 30 aos 70. É evidente que os EUA participaram
de maneira profunda da construção do que é a civilização hoje.
Mas esse período talvez tenha terminado. O império, a constituição de uma ordem global, vai
além dos EUA.
Folha - O senhor fala de império
sem imperialismo, considerando
ultrapassada a idéia de Estado-nação. Mas a globalização hoje beneficia alguns países, em detrimento
de outros.
Negri - Estou completamente de
acordo, posso dizer até pior: temos uma espécie de hierarquia rígida na constituição mundial. Os
países do centro são países que
vão ganhar nesse processo. Isso é
evidente. Seria completamente
idiota negar isso, mas é igualmente idiota pensar que as nações
possam, um, quebrar esse processo de globalização, dois, ter uma
função protagonista na repartição
da riqueza mundial.
Quem são as nações? São os patrões, os que aqui criaram as favelas, a mais forte divisão de classe,
o racismo. São essas as pessoas
que querem defender os princípios nacionais diante da América
e da Europa.
A globalização é um fato, mas é
preciso organizá-la. A luta é sobre
quem organizará a globalização.
Se essa organização será democrática, é preciso definir o que é
democracia, e não é nem a democracia americana nem a brasileira.
A opinião pública, tanto na América quanto no Brasil, está dopada, falsificada. O problema é esse.
Folha - O que é hoje ser de direita
ou de esquerda?
Negri - A Itália tem um governo
de direita, mas sei que na direita
italiana há um ministro fascista
que propôs o direito de voto aos
imigrantes. Isso sei que é algo da
esquerda. Tenho alguns critérios,
que são muito simples: preferir o
comum ao privado, por exemplo.
A esquerda prefere o que é comum. Não simplesmente o público, mas o que é comum, como a
água, os recursos. Não privatizar
isso é de esquerda. É de esquerda
reapropriar os meios de produção, e é de direita privatizá-los.
Resta a todo mundo decidir se é
de direita ou de esquerda. Não há
confusão de idéias, há confusão
de práticas.
Folha - Como avalia a eleição de
Arnold Schwarzenegger para o governo da Califórnia?
Negri - Tenho a impressão de
que, fora dos movimentos democráticos, tudo pode acontecer:
Schwarzenegger, [Jörg] Haider
[na Áustria], ou Berlusconi, na
Itália. Gostaria de saber por que
[José Maria] Aznar [primeiro-ministro espanhol] ou Putin devem
ser considerados muito diferentes
de Schwarzenegger. Os meios para produzi-los são os mesmos, é o
monopólio da comunicação.
Com Bush é um pouco diferente,
porque os dois são equivalentes.
Não sei se Schwarzenegger é um
escândalo em particular. É um escândalo, é evidente, que ele tenha
se tornado chefe de um país de 35
milhões [a Califórnia], a sexta potência do mundo, do ponto de
vista econômico, é uma loucura,
dá medo.
Folha - O senhor crê que há uma
separação entre as representações
dos países -Bush, Putin- e os
países em si?
Negri - Creio que a representação política, tal como foi formada
na modernidade, está em crise.
Essa representação fundada nas
regras da democracia formal está
em crise. E em crise radical. Há
poderes que apareceram, em particular o poder dos "media", que
estão fora de controle. São eles
que decidem, de maneira fundamental, sobre a representação.
A criação do imaginário humano não é mais a que existia no começo da democracia. Todas as regras da representação são completamente transgredidas. Estão
em crise. O problema não é Putin.
É por isso que os movimentos sociais são tão importantes, porque
são a construção do imaginário, a
expressão da necessidade, do desejo. O problema é reinventar as
formas de representação. É preciso colocar esse problema, tanto
nos velhos espaços nacionais
quanto nos espaços globais.
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