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São Paulo, segunda-feira, 13 de outubro de 2003

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ENTREVISTA

No Rio, filósofo italiano Toni Negri diz que ação dos EUA no Oriente Médio visa a dominar fontes de energia da Europa

"Bush atacou Iraque para controlar UE"

CLAUDIA ANTUNES
FERNANDA DA ESCÓSSIA
DA SUCURSAL DO RIO

Um dos gurus do movimento antiglobalização, o filósofo italiano Antonio (Toni) Negri diz não ver muita diferença entre o ator Arnold Schwarzenegger, eleito governador da Califórnia, o presidente russo, Vladimir Putin, o norte-americano, George W. Bush, ou o premiê italiano, Silvio Berlusconi.
Para Negri, 70, Schwarzenegger não é "um escândalo em particular", mas resultado, como os demais, do monopólio da comunicação e da crise da representação política tradicional.
Negri é autor, junto com o americano Michael Hardt, de "Império", que vê na resistência supranacional a única maneira de mudar as bases da globalização, e prepara "Império 2". Esta é a primeira viagem ao Brasil do filósofo, em liberdade depois de cumprir pena pelo sequestro e morte, em 1978, do líder democrata-cristão Aldo Moro. No livro "De Retour", ele afirma que nunca participou de atentados.
O filósofo ficou quatro anos em prisão de alta segurança. Em 1983, fugiu para a França, onde se exilou até 1997. Voltou para a Itália, segundo diz, por causa de uma "desilusão amorosa". Foi preso novamente e agora está livre, com seu passaporte de volta.
Negri faz hoje no Rio a conferência "As Multidões e o Império", em evento do Ministério da Cultura e pela Universidade Nômade, que reúne intelectuais do Rio e de São Paulo. No evento, será lançada a revista "Global". Ele fará também duas palestras em São Paulo nesta semana.
Amante do futebol, torce para o Milan. "É o mesmo time de Berlusconi. Mas quando a gente é torcedor, suporta tudo", disse, em entrevista à Folha.

 

Folha - Qual é sua opinião sobre o governo Lula?
Antonio Negri -
Não posso entrar no debate político interno do Brasil, não sou um conhecedor. Do ponto de vista internacional, Lula e a política externa brasileira tornaram-se muito importantes. É extremamente evidente a presença de Lula na crise do período pré-Iraque. Foi a primeira vez que um país do sul da América teve um papel importante na cena internacional.

Folha - O senhor já disse que a guerra dos EUA contra o Iraque foi um pretexto para atacar a Europa. Por quê?
Negri -
É uma longa história. Começa nos anos 70, quando a Europa, pela primeira vez, se aproxima no campo político de uma reorganização interna independente da Otan [a aliança militar com os EUA]. Isso coincide com a primeira crise do petróleo, em 1973.
A Europa é dependente, em energia, do Oriente Médio. O que se passa lá é vital para a Europa. Desde que a União Européia progrediu, a luta americana contra a unidade européia tornou-se mais forte. A intervenção estratégica dos EUA no Oriente Médio tem como um de seus elementos fundamentais o controle da Europa e dos recursos energéticos.

Folha - O senhor mencionou a posição brasileira sobre o Iraque, próxima da de países europeus como França e Alemanha. Mas, na reunião da Organização Mundial do Comércio, em Cancún, os EUA se aliaram à Europa em defesa do protecionismo agrícola. Como o senhor vê essa diferença?
Negri -
A globalização é um processo que avança e deve avançar. Sou contrário à proteção européia ao mercado agrícola. Mas em Cancún passou-se algo mais importante, o bloqueio a novas privatizações e a novos processos neoliberais. A privatização dos bens comuns foi bloqueada [quando os países pobres rejeitaram a liberalização dos serviços, incluindo a educação, e as regras de investimentos propostas pelos ricos]. Isso, sim, é importante, muito mais do que a questão agrícola -que deverá ser resolvida mais cedo ou mais tarde.

Folha - O senhor vê, na invasão do Iraque -contra a opinião pública mundial e a ONU- o retrato de um poder sem igual na história?
Negri -
É verdade que o poderio militar dos EUA é extraordinário, mas não creio que ele seja suficiente. Hoje os EUA não têm meios para manter a ocupação do Iraque nem, em geral, as políticas contra o terrorismo, entre aspas, tal como começaram. Esse poder militar monárquico é condicionado pelo poderio econômico.

Folha - O que acha das previsões de queda do império americano?
Negri -
Não penso que exista uma queda do império americano, porque não penso que haja queda do império de ninguém. Talvez seja verdadeiro que o auge do poder americano já passou, foi a fase dos anos 30 aos 70. É evidente que os EUA participaram de maneira profunda da construção do que é a civilização hoje. Mas esse período talvez tenha terminado. O império, a constituição de uma ordem global, vai além dos EUA.

Folha - O senhor fala de império sem imperialismo, considerando ultrapassada a idéia de Estado-nação. Mas a globalização hoje beneficia alguns países, em detrimento de outros.
Negri -
Estou completamente de acordo, posso dizer até pior: temos uma espécie de hierarquia rígida na constituição mundial. Os países do centro são países que vão ganhar nesse processo. Isso é evidente. Seria completamente idiota negar isso, mas é igualmente idiota pensar que as nações possam, um, quebrar esse processo de globalização, dois, ter uma função protagonista na repartição da riqueza mundial.
Quem são as nações? São os patrões, os que aqui criaram as favelas, a mais forte divisão de classe, o racismo. São essas as pessoas que querem defender os princípios nacionais diante da América e da Europa.
A globalização é um fato, mas é preciso organizá-la. A luta é sobre quem organizará a globalização. Se essa organização será democrática, é preciso definir o que é democracia, e não é nem a democracia americana nem a brasileira. A opinião pública, tanto na América quanto no Brasil, está dopada, falsificada. O problema é esse.

Folha - O que é hoje ser de direita ou de esquerda?
Negri -
A Itália tem um governo de direita, mas sei que na direita italiana há um ministro fascista que propôs o direito de voto aos imigrantes. Isso sei que é algo da esquerda. Tenho alguns critérios, que são muito simples: preferir o comum ao privado, por exemplo. A esquerda prefere o que é comum. Não simplesmente o público, mas o que é comum, como a água, os recursos. Não privatizar isso é de esquerda. É de esquerda reapropriar os meios de produção, e é de direita privatizá-los. Resta a todo mundo decidir se é de direita ou de esquerda. Não há confusão de idéias, há confusão de práticas.

Folha - Como avalia a eleição de Arnold Schwarzenegger para o governo da Califórnia?
Negri -
Tenho a impressão de que, fora dos movimentos democráticos, tudo pode acontecer: Schwarzenegger, [Jörg] Haider [na Áustria], ou Berlusconi, na Itália. Gostaria de saber por que [José Maria] Aznar [primeiro-ministro espanhol] ou Putin devem ser considerados muito diferentes de Schwarzenegger. Os meios para produzi-los são os mesmos, é o monopólio da comunicação. Com Bush é um pouco diferente, porque os dois são equivalentes. Não sei se Schwarzenegger é um escândalo em particular. É um escândalo, é evidente, que ele tenha se tornado chefe de um país de 35 milhões [a Califórnia], a sexta potência do mundo, do ponto de vista econômico, é uma loucura, dá medo.

Folha - O senhor crê que há uma separação entre as representações dos países -Bush, Putin- e os países em si?
Negri -
Creio que a representação política, tal como foi formada na modernidade, está em crise. Essa representação fundada nas regras da democracia formal está em crise. E em crise radical. Há poderes que apareceram, em particular o poder dos "media", que estão fora de controle. São eles que decidem, de maneira fundamental, sobre a representação.
A criação do imaginário humano não é mais a que existia no começo da democracia. Todas as regras da representação são completamente transgredidas. Estão em crise. O problema não é Putin. É por isso que os movimentos sociais são tão importantes, porque são a construção do imaginário, a expressão da necessidade, do desejo. O problema é reinventar as formas de representação. É preciso colocar esse problema, tanto nos velhos espaços nacionais quanto nos espaços globais.



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