São Paulo, domingo, 13 de novembro de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

No subúrbio, ar pacífico esconde tensão constante

MARINA DE CAMPOS MELLO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Centro de Paris. Um homem de origem magrebina atravessa a rua lentamente quando o sinal de trânsito muda para o verde. Impaciente, o motorista buzina para apressar o pedestre. A resposta: "Você acha que pode fazer isso só porque eu sou árabe?". Sem hesitar, enfia-se pela janela do veículo e esbofeteia a cara do francês. O incidente ocorreu há mais ou menos dois meses. Ou seja, antes da onda de violência que se iniciou nos subúrbios parisienses e se espalhou por toda a França. Casos como esse não são corriqueiros, mas bem ilustram a tensão social dos grandes centros franceses.
Afastando-se da Paris turística, chega-se a Creteil, periferia próxima. À primeira vista, é uma cidade aprazível.
Ao lado do metrô, ergue-se um shopping center. Quem contorna o prédio depara-se com um parque, que tem como atração um lago com canteiros floridos, onde se pratica windsurf.
Por trás dessa aparente tranqüilidade, a violência é uma constante. Cenas de carros queimados já são, há anos, conhecidas dos habitantes. Creteil teve um crescimento vertiginoso a partir dos anos 50 e, desde então, sua população quintuplicou, atingindo 85 mil habitantes. A cidade acolheu imigrantes, abrigados em conjuntos habitacionais ou "cités".
O projeto urbanístico e de integração era ambicioso, mas, em algum momento, falhou. Mesmo antes dos atuais conflitos tomarem proporções nacionais, de vez em quando atos ou discursos do ministro do Interior, Nicolas Sarkozy, já provocavam a revolta dos "filhos dos banlieues".
Outras vezes, os protestos - ou simples atos de vandalismo- direcionam-se contra a polícia. Yassin Adnane, marroquino de 31 anos que viveu em Creteil entre 2001 e 2003, conta que já viu viaturas serem atingidas por máquinas de lavar louça e outros eletrodomésticos, atirados do alto dos prédios. Em outra ocasião, teve de deixar às pressas seu apartamento, pois o porão do edifício estava em chamas. Questionado sobre as possíveis motivações desses atos, diz que seus jovens vizinhos acreditam que a França tem uma dívida com os imigrantes. Atos dessa natureza obrigariam o governo a voltar os olhos para o subúrbio e a gastar mais dinheiro na região.
Na estação de trem de Villemomble, a leste de Paris, um desavisado poderia se crer na África. Mulheres com turbantes coloridos conversam entre si em línguas estranhas e carregam bebês em trouxas nas costas. Outros falam árabe. Há também famílias brancas de classe média, que optaram por uma vida mais calma e barata nos subúrbios. Elas vivem em casas com jardins e hortas, cercadas por enormes conjuntos habitacionais onde se instalam imigrantes vindos de ex-colônias francesas da África subsaariana.
É certo que brancos, negros e árabes dividem o mesmo espaço, mas não há convivência. Anna,12, filha de um casal franco-alemão, já se habituou a ser a única branca no ônibus que a traz do balé. Mas essa não é a escolha de todas as famílias. Parte de suas colegas mudou-se para escolas privadas, pois seus pais não querem que elas se misturem a "essa gente das cités".
Não há respostas simples para esse clima. Embora fatores econômicos e o racismo tenham grande peso, há uma evidência: a falta de identidade cultural. Ao mesmo tempo em que se orgulham da cultura de seus pais e avós, os jovens a renegam na tentativa de se enquadrar no país em que vivem. Apesar de nascidos na França, são tratados como "os árabes". Os negros são chamados de "africanos". Mas quando visitam a família em seus países de origem são "os europeus" ou "os franceses", que podem até transmitir uma imagem de sucesso. É quase esquizofrênico. E, provavelmente, serão necessários pelo menos mais 50 anos para que a França assimile essa população e todos passem a ser simplesmente franceses.


A advogada Marina de Campos Mello, 26, estudou um ano em Paris entre 2002 e 2003, período durante o qual morou três meses em Villemomble (Departamento Seine-Saint-Denis) e um mês em um conjunto habitacional

Texto Anterior: Europa: Cidade onde tudo começou é assustadora
Próximo Texto: Artigo: "Gangsta rap" em francês
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.