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No subúrbio, ar pacífico esconde tensão constante
MARINA DE CAMPOS MELLO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Centro de Paris. Um homem de
origem magrebina atravessa a rua
lentamente quando o sinal de
trânsito muda para o verde. Impaciente, o motorista buzina para
apressar o pedestre. A resposta:
"Você acha que pode fazer isso só
porque eu sou árabe?". Sem hesitar, enfia-se pela janela do veículo
e esbofeteia a cara do francês. O
incidente ocorreu há mais ou menos dois meses. Ou seja, antes da
onda de violência que se iniciou
nos subúrbios parisienses e se espalhou por toda a França. Casos
como esse não são corriqueiros,
mas bem ilustram a tensão social
dos grandes centros franceses.
Afastando-se da Paris turística,
chega-se a Creteil, periferia próxima. À primeira vista, é uma cidade aprazível.
Ao lado do metrô, ergue-se um
shopping center. Quem contorna
o prédio depara-se com um parque, que tem como atração um lago com canteiros floridos, onde se
pratica windsurf.
Por trás dessa aparente tranqüilidade, a violência é uma constante. Cenas de carros queimados já
são, há anos, conhecidas dos habitantes. Creteil teve um crescimento vertiginoso a partir dos
anos 50 e, desde então, sua população quintuplicou, atingindo 85
mil habitantes. A cidade acolheu
imigrantes, abrigados em conjuntos habitacionais ou "cités".
O projeto urbanístico e de integração era ambicioso, mas, em algum momento, falhou. Mesmo
antes dos atuais conflitos tomarem proporções nacionais, de vez
em quando atos ou discursos do
ministro do Interior, Nicolas Sarkozy, já provocavam a revolta dos
"filhos dos banlieues".
Outras vezes, os protestos - ou
simples atos de vandalismo- direcionam-se contra a polícia. Yassin Adnane, marroquino de 31
anos que viveu em Creteil entre
2001 e 2003, conta que já viu viaturas serem atingidas por máquinas
de lavar louça e outros eletrodomésticos, atirados do alto dos prédios. Em outra ocasião, teve de
deixar às pressas seu apartamento, pois o porão do edifício estava
em chamas. Questionado sobre as
possíveis motivações desses atos,
diz que seus jovens vizinhos acreditam que a França tem uma dívida com os imigrantes. Atos dessa
natureza obrigariam o governo a
voltar os olhos para o subúrbio e a
gastar mais dinheiro na região.
Na estação de trem de Villemomble, a leste de Paris, um desavisado poderia se crer na África.
Mulheres com turbantes coloridos conversam entre si em línguas estranhas e carregam bebês
em trouxas nas costas. Outros falam árabe. Há também famílias
brancas de classe média, que optaram por uma vida mais calma e
barata nos subúrbios. Elas vivem
em casas com jardins e hortas,
cercadas por enormes conjuntos
habitacionais onde se instalam
imigrantes vindos de ex-colônias
francesas da África subsaariana.
É certo que brancos, negros e
árabes dividem o mesmo espaço,
mas não há convivência. Anna,12,
filha de um casal franco-alemão,
já se habituou a ser a única branca
no ônibus que a traz do balé. Mas
essa não é a escolha de todas as famílias. Parte de suas colegas mudou-se para escolas privadas, pois
seus pais não querem que elas se
misturem a "essa gente das cités".
Não há respostas simples para
esse clima. Embora fatores econômicos e o racismo tenham grande
peso, há uma evidência: a falta de
identidade cultural. Ao mesmo
tempo em que se orgulham da
cultura de seus pais e avós, os jovens a renegam na tentativa de se
enquadrar no país em que vivem.
Apesar de nascidos na França, são
tratados como "os árabes". Os negros são chamados de "africanos". Mas quando visitam a família em seus países de origem são
"os europeus" ou "os franceses",
que podem até transmitir uma
imagem de sucesso. É quase esquizofrênico. E, provavelmente,
serão necessários pelo menos
mais 50 anos para que a França
assimile essa população e todos
passem a ser simplesmente franceses.
A advogada Marina de Campos Mello,
26, estudou um ano em Paris entre 2002
e 2003, período durante o qual morou
três meses em Villemomble (Departamento Seine-Saint-Denis) e um mês em
um conjunto habitacional
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