São Paulo, domingo, 13 de novembro de 2005

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ARTIGO

Todos devíamos aprender com a França

A revolta que eclodiu na França não foi motivada só pela pobreza da população suburbana. Por trás disso há algo muito maior: a ausência de um projeto de nação

FRANK FUREDI

A explosão dos distúrbios na França não apenas pegou a polícia desprevenida -ela também trouxe à tona a incapacidade da imaginação européia de encontrar um sentido nos acontecimentos atuais.
Como argumentei anteriormente na "Spiked", parecem faltar palavras à política: figuras públicas e a mídia lutam para compreender ou explicar as questões mais importantes do século 21. Neste momento, muitos parecem ser incapazes de compreender uma situação na qual grupos relativamente pequenos de adolescentes e crianças dos "banlieues" (os subúrbios franceses) conseguem expor a impotência das forças francesas da lei e da ordem e, também, da própria elite política francesa. Como é possível que jovens destituídos de metas ou objetivos políticos possam questionar a legitimidade de toda autoridade e expor a fraqueza do senso de identidade de um dos países mais antigos e poderosos da Europa?
A reação à crise francesa vem sendo dominada pelo silêncio e pelas evasivas. Alguns buscam refúgio nas explicações econômicas. A declaração banal de Bill Clinton de que "é a economia, estúpido!" parecem ter ganho o status de verdade política inconteste. Trata-se de uma tentativa de utilizar a linguagem dos anos 1980 -pobreza, exclusão e marginalização- para encontrar o sentido dos distúrbios atuais. Se a baderna pode ser explicada em termos econômicos, então talvez exista uma solução pronta para ela: talvez uma verba da UE para o desenvolvimento, esquemas de formação profissional e empregos pudessem dar conta do recado e acalmar a situação.


Como é possível que jovens destituídos de objetivos políticos possam questionar a legitimidade de toda autoridade e expor a fraqueza do senso de identidade de um dos países mais antigos e poderosos da Europa?

Infelizmente, a explosão de violência confusa e niilista não pode ser compreendida simplesmente por meio da linguagem da ciência econômica. Sim, a população de Aulnay-sous-Bois, Blanc-Mesnil e outros subúrbios parisienses freqüentemente ocupa o escalão mais baixo da pirâmide econômica e é privada de oportunidades. Mas a agitação que está em curso não é causada apenas pela pobreza. A história mostra que a pobreza, por si só, raramente conduz a distúrbios violentos. Precisamos levar em conta outras influências que estão ajudando a moldar os acontecimentos atuais.
Outra explicação previsível dos distúrbios é o argumento de que a França não conseguiu integrar suas diversas comunidades imigrantes. Os comentaristas adeptos da política do multiculturalismo acham incompreensível que um país moderno ainda possa acreditar no ideal da assimilação. O ideal historicamente progressista segundo o qual um país deve tratar seus habitantes como cidadãos, mais do que como membros de um grupo religioso, étnico ou cultural, é hoje descrito como escandaloso por aqueles para os quais a política da identidade deve ter hegemonia. Assim, a França é criticada pelo fato de não ter aderido ao multiculturalismo e o institucionalizado, concedendo aos diferentes grupos étnicos o respeito que lhes é devido.
Desde essa perspectiva, a onda de violência é vista como reprise dos distúrbios que atingiram os EUA nos anos 60 e os bairros urbanos pobres do Reino Unido nos anos 80 e 90. Essa interpretação significa que podem ser apresentadas soluções bem ensaiadas e prontamente reconhecíveis: se acrescentarmos algumas pitadas de política multicultural a uma camada de regeneração dos guetos urbanos, temperarmos o prato com algum policiamento dessas comunidades e apresentarmos o todo em conjunto com um governo unido, talvez as coisas se acalmem.
Não há muita dúvida de que a versão de assimilação praticada na França não é fiel a seus princípios de verdadeiro universalismo. Outra coisa é que está claro que ela não está funcionando. Mas os críticos multiculturalistas da França deveriam refletir sobre o estado do resto da Europa. Os incidentes recentes de carros incendiados em Berlim e Bruxelas podem ser casos isolados de indivíduos copiando o que vem sendo feito na França, mas também são sintomáticos de uma tensão subjacente semelhante àquela que levou às explosões violentas nesse país. Um editorial recente intitulado "Aprendendo uns com os outros", publicado no jornal britânico "The Guardian", fez um sermão aos franceses, falando de sua necessidade de aprender com a experiência dos EUA nos anos 60 e do Reino Unido nos anos 80 e de tirar as conclusões multiculturalistas apropriadas. Mas o editorial deixou de mencionar os confrontos urbanos que irromperam na Inglaterra em 2001, após muitos anos de experimentação com a política multicultural. Houve manifestações violentas nos redutos multiculturais de Bradford, Burnley e Oldham, fato que parece indicar que o multiculturalismo não constitui política mais efetiva do que as tentativas francesas atuais de assimilação.

Pela primeira vez na era moderna as elites políticas européias estão destituídas de projeto. Elas não têm mais uma missão a cumprir. Não têm uma visão definida que possa moldar sua política e suas ações no cotidiano

Os distúrbios ocorridos no Reino Unido em 2001 renderam duas lições importantes aos responsáveis políticos. Primeiro, mostraram que não era possível atribuir a agitação unicamente ao problema da carência econômica. Sim, essas comunidades eram relativamente pobres -mas os jovens asiáticos envolvidos nos tumultos vinham, em sua maioria, de comunidades em situação econômica melhor do que seus equivalentes brancos da classe trabalhadora, estavam mais bem interligados em redes e eram mais bem instruídos. Em segundo lugar, os tumultos mostraram que a política da inclusão não aproximava as comunidades. Todas as evidências levavam a crer que as gerações mais jovens das minorias étnicas se sentiam mais distantes e alienadas do Reino Unido do que se sentiam seus pais ou avós. Paradoxalmente, parece que as políticas muito diferentes seguidas pelas elites britânica e francesa acabaram conduzindo a resultados muito semelhantes.

Política sem sentido
O mais significativo nos acontecimentos recentes na França não é o comportamento dos manifestantes, mas a reação da classe política e das autoridades oficiais. A resposta do regime de George W. Bush à inundação de Nova Orleans parece quase enérgica se comparada ao clima de paralisia e confusão que parece ter tomado os meios oficiais franceses.
Durante a primeira semana dos distúrbios, os políticos franceses se ocuparam sobretudo de marcar pontos uns contra os outros. Nero tocando violino enquanto Roma ardia em chamas parece ter sido o exemplo que o gabinete francês seguiu. Durante uma semana inteira o presidente Jacques Chirac literalmente se afastou do domínio público e não disse nada.
Contrariando alguns relatos da mídia sobre a brutalidade da polícia antimotim francesa, esta também se comportou como sonâmbula. Uma polícia que tradicionalmente é associada a incidentes de brutalidade casual parece ter perdido a idéia de o que fazer e em lugar disso apenas fez de conta que estava reagindo aos manifestantes. Após alguns dias a polícia passou a fazer o papel de vítima incompreendida, perguntando-se em voz alta "por que eles estão nos atacando?".
Essa relutância em enfrentar publicamente o problema em pauta não é algo próprio apenas dos políticos franceses. No mês passado foi a vez de as autoridades britânicas estarem ocupadas demais para discutir um problema sério. A violência que irrompeu em Lozells, um subúrbio de Birmingham -quando confrontos violentos entre as comunidades negra e asiática foram desencadeados por um boato sobre uma garota negra de 14 anos que teria sido currada por um bando de homens asiáticos- foi tratada meramente como incidente embaraçoso no qual os líderes adotaram uma atitude de "quanto menos se falar nisso, melhor". Essa reação pode ter garantido uma solução provisória para os distúrbios de Lozells. Mas ela fracassou totalmente na França.
Embora a disseminação dos confrontos dos subúrbios parisienses para outras partes da França possa ser vista como fruto de emulação espontânea, seu motor principal tem sido a reação das próprias autoridades. Falta às elites francesas um senso de objetivo, e elas estão politicamente exauridas. Como eu argumento com mais detalhes em meu novo livro, "Politics of Fear" (a política do medo), pela primeira vez na era moderna as elites políticas européias estão destituídas de projeto. Elas não têm mais uma missão a cumprir. Não têm uma visão definida que possa moldar sua política e suas ações no cotidiano.
Nas últimas décadas, essas elites aderiram à UE e vêm buscando formar uma identidade européia capaz de produzir uma vida pública dotada de algum sentido. No entanto, esse projeto gerencial elitista não possui a capacidade de inspirar a população. A rejeição da Constituição da UE pela França e Holanda neste ano deixou clara a ausência de legitimidade dessa instituição tecnocrática.
O estado atual de exaustão política mostra que falta à vida pública um senso de meta, perspectiva e sentido. O elogio da diversidade é provavelmente o mais claro exemplo dessa estratégia evasiva. Celebrar os muitos é um ato destituído de sentido que apenas reconhece a realidade de que não somos todos iguais. A diversidade é a afirmação de um fato, e transformar esse fato em ideal equivale a evitar por completo nutrir ideais verdadeiros. Mais especificamente, poupa as autoridades da necessidade de declarar o que é que define sua sociedade. É por isso que a política francesa da assimilação e a busca britânica do multiculturalismo apresentam resultados tão semelhantes: essas políticas evitam a tarefa dura de dizer realmente o que significa ser britânico ou francês, e, portanto, levantam implicitamente a questão do significado, de forma aguda.
O que os acontecimentos na França demonstram é que poder sem meta ou objetivo significa muito pouco. O poder e a autoridade ganham definição através do senso de direção. E, quanto mais essa impotência é exposta, mas isso encoraja as pessoas marginalizadas da sociedade a se expressarem à sua maneira. Isso é indicativo não apenas de simples incompetência oficial, mas de uma elite que já deixou de acreditar na legitimidade de sua própria autoridade e de seu próprio modo de vida. A maneira pela qual essa crise de ideais vem sendo intensamente amplificada através da imprensa francesa tem sido um dos principais motores dos tumultos recentes. Mas não se deve atribuir a culpa à mídia. A crítica cínica que ela faz das autoridades francesas é compartilhada pelos próprios detentores do poder, embora eles não façam alarde disso. Ao trazer à tona essa verdade, a mídia francesa está apenas transmitindo a mensagem de que falta sentido à política.

Exaustão
O processo de exaustão política domina a vida pública no Ocidente desde o final da Guerra Fria. Esse processo tem tido um impacto poderoso e próprio sobre a França. Ao longo dos tempos modernos, a França viveu uma forma intensa e sofisticada de política de classes. O conflito entre esquerda e direita exerceu impacto poderoso sobre todas as dimensões da cultura francesa. Entretanto, com a desintegração da política de classes na década de 80, as distinções tradicionais na vida pública perderam sentido. Essas mudanças cobraram um preço especialmente caro dos movimentos de esquerda e da classe trabalhadora. Hoje a política de classes existe apenas em forma populista caricaturada. Ela já deixou de funcionar como foco de unidade das massas. Embora as tensões entre trabalhadores franceses nativos e imigrantes tenham um histórico longo, esses conflitos, anteriormente, eram moderados pelas instituições do movimento sindical. O declínio desse movimento contribuiu para uma situação na qual as diferenças étnicas, culturais e raciais se consolidaram.
A marginalização do movimento sindical tem seu paralelo no declínio da coerência no interior da elite francesa. Desde o final da Segunda Guerra, os dirigentes franceses procuraram moldar um papel mundial próprio para o país. O presidente Charles de Gaulle procurou promover uma imagem poderosa da França no mundo pela posse da dissuasão nuclear; foi uma tentativa de projetar um sentimento de independência nacional, em um mundo que, na era da Guerra Fria, era dominado pelas duas superpotências. De Gaulle também procurou assumir a liderança da Europa e encorajou ativamente a construção de uma instituição continental. E os governos franceses cultivaram cuidadosamente sua herança cultural, na busca de implementar seu projeto de conquistar influência mundial. Apesar de sua relativa debilidade econômica, a combinação desses projetos dotou a política francesa de uma missão, conferindo à França uma influência superior a seu peso real.
Desde o final da Guerra Fria, está muito menos claro qual pode ser o papel global da França. Sua reivindicação de atuar como líder da Europa perdeu força com a expansão da UE e o declínio do eixo franco-alemão. De fato, a rejeição da Constituição da UE pelo eleitorado francês indicou que a Europa já deixou de ser um projeto que consegue unir os franceses. Na ausência da missão gaullista, a política doméstica degringolou, ganhando contornos de farsa. A política partidária perdeu seu rumo. Chirac não é nenhum De Gaulle: ele preside sobre um sistema político em que grupinhos de indivíduos brigam por cargos, privilégios e pouco mais do que isso.
Em algum lugar entre o nacionalismo agressivo de De Gaulle e a política silenciosa, confusa e sem eixo de hoje, a França perdeu sua identidade. Quando conversei com ativistas políticos no início deste ano, eles me disseram que os franceses diferem dos anglo-saxões pelo fato de aderirem ao modelo "social". Agora que o modelo "social" foi desmascarado pela explosão dos guetos, ficou difícil apontar para valores que sejam distintamente franceses. É por isso que todos os discursos recentes que fazem referência à França soam tão vazios. Não surpreende que pessoas originárias da África ou do norte da África não se sintam particularmente inspiradas pela bandeira francesa. O imperador está nu. Não é fácil alguém se sentir impressionado por roupas inexistentes.
O efeito cumulativo da perda de sentido na França e do enfraquecimento da autoridade das elites é a intensificação dos conflitos e divisões. As pessoas que vivem nos subúrbios imigrantes de Paris não apenas vivem sem acesso a recursos, como também estão profundamente alienadas dos valores e do modo de vida associados aos franceses. Os jovens que ateiam fogo a carros e escolas não têm projeto político ou objetivo definido. Eles não são movidos por uma visão social ou uma ideologia islâmica -não por enquanto, pelo menos. Eles simplesmente desejam o tipo de prosperidade francesa que vislumbram do outro lado da trilha do trem, sem, entretanto, querer se associar a qualquer idéia da França.
Resumindo em termos diretos: não existem valores franceses a compartilhar. Na ausência de uma teia comum de sentido, até mesmo diferenças pequenas podem se transformar num conflito de grandes proporções. Sob tais circunstâncias, existem todos os incentivos para se inflamarem as desconfianças e ampliarem as diferenças. É essa a política de hoje e, provavelmente, a de amanhã.
Um último ponto que merece ser destacado: a mídia anglo-americana se apressou a pregar sermões aos franceses, falando da maneira esclarecida de trabalhar com as relações raciais e conclamando-os a aprender com os EUA e o Reino Unido. Talvez esse aprendizado devesse se dar no sentido inverso. Os problemas que afligem a França não são frutos de uma política francesa destituída de imaginação. Em última análise, são frutos de uma exaustão política que não está menos presente no Reino Unido ou na Bélgica do que na França. A solução consiste não em imaginar maneiras astutas de administrar o conflito de comunidades, mas em exigir que as sociedades parem de fugir das questões fundamentais impostas por nossos tempos: qual é o objetivo da política? Quem somos, como sociedade? O que define nossa condição humana?

Frank Furedi é autor de "The Politics of Fear: Beyond Left and Right" (a política do medo: além da esquerda e da direita). Este texto foi originalmente publicado na revista britânica Spiked (www.spiked-online.com)

Tradução de Clara Allain


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