São Paulo, domingo, 14 de março de 2004

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ARTIGO

Combate ao terror não pode constranger liberdades

ROBIN COOK

É a natureza súbita e arbitrária da morte em um atentado terrorista que inspira apreensão universal. As vítimas inocentes de Madri não haviam feito nada para provocar seu assassinato. Nem poderiam ter feito nada, conscientemente, para se salvar.
A escala do massacre é chocante. No entanto sua ressonância em toda a Europa não deriva da aritmética das baixas, mas de nossa identificação com as ações das vítimas no momento em que foram abatidas. Como milhões de pessoas em todo o continente, naquela mesma hora, as vítimas estavam embarcando para a rotineira viagem aos seus locais de trabalho, sem nenhum motivo para suspeitar que aquela poderia ser sua última jornada.
O terrorismo é assustador exatamente devido à imprevisibilidade, à seleção aleatória de suas vítimas entre os cidadãos comuns.
E, ao mesmo tempo, ele nos causa indignação devido à insensatez, ao desperdício e à dor profunda que deixa em sua esteira. Décadas depois que a maioria de nós tiver esquecido as bombas nos trens de Madri, algumas pessoas na Espanha ainda terão de conviver com o trauma.

Novo padrão
Se a Al Qaeda não executou essa operação, certamente definiu o padrão ao qual as demais organizações terroristas agora aspiram. O ETA vem concentrando suas energias destrutivas, geralmente, em alvos políticos específicos e, nos últimos anos, reduziu a escala e a intensidade de suas operações terroristas. Se o ETA ou alguma nova ala dissidente do grupo adotou a tática característica da Al Qaeda, de ataques simultâneos e espetaculares, estamos testemunhando uma alarmante escalada do terrorismo internacional.
O atentado em Madri aconteceu dias antes das eleições gerais na Espanha, e seu objetivo é claramente prejudicar a votação. Mas isso gera ainda mais perplexidade na tentativa de compreender o que os terroristas poderiam ganhar de fato com um assassinato em massa dessa escala. O resultado mais provável é que será ainda maior o comparecimento de eleitores indignados, determinados a não permitir que os terroristas solapem a democracia.
A verdadeira ameaça do terrorismo à democracia não é que possa nos impedir de participar de eleições, mas que nos force a restringir as liberdades e direitos legais inseparáveis da democracia. A luta entre uma sociedade aberta e seus inimigos é antiga o bastante para que compreendamos, a essa altura, os riscos de vencer a batalha usando métodos que nos custem as liberdades que estamos tentando proteger.
Os insidiosos murmúrios do autoritarismo, ao longo da história, caracterizam a democracia como um luxo do qual não podemos desfrutar diante da violência. Na verdade, as sociedades democráticas se provaram mais fortes, e não mais fracas, diante de ameaças, devido à determinação que compartilham quanto a obter sucesso em nome da causa comum.
Nenhum cidadão sensato se colocaria, sob as presentes circunstâncias, contra um esforço intensivo de nossas agências de segurança para obter informações que impeçam um ataque terrorista ou contra ações vigorosas de nossa polícia para deter aqueles que genuinamente planejam assassinatos em massa.
Mas precisamos nos precaver contra responder ao terrorismo de formas que fraturem a coesão da sociedade e alienem quaisquer de seus membros com relação à causa comum.
No Reino Unido, existe uma resposta autoritária à ameaça terrorista que acarreta o risco de convencer uma larga seção de nossa sociedade de que ela é mais uma vítima da guerra contra o terrorismo do que um parceiro nessa empreitada.
Desde o 11 de Setembro, o número de buscas sob a Lei de Prevenção do Terrorismo se ampliou em cinco vezes, para 30 mil ao ano. A maioria esmagadora dessas buscas acontece em batidas às casas de famílias muçulmanas. As portas são derrubadas, e os moradores, tratados com brutalidade, como suspeitos de terrorismo.
Se essa nova onda de batidas domiciliares tivesse resultado em uma carga considerável de provas de terrorismo, talvez o cidadão pudesse dar de ombros e aceitar o inconveniente causado às famílias inocentes como lastimável, mas necessário. Mas a estatística chocante é que menos de 1% das batidas resultou em detenções. Para expressar a situação de outra maneira, 99,5% das batidas contra famílias muçulmanas resultaram em ligação nenhuma com terroristas. Se quiséssemos alienar cidadãos inocentes da guerra contra o terror, seria difícil encontrar uma maneira mais efetiva do que tratá-los como terroristas.
A repatriação ao Reino Unido de detidos em Guantánamo, na semana passada, ilustra os perigos de permitir que a vigilância, uma força que pode servir para unificar, se transforme em repressão, uma força sempre divisora. Ninguém, quer nos EUA, quer no Reino Unido, conseguiu encontrar justificativa convincente para manter essas pessoas detidas, sob circunstâncias degradantes, por dois anos, para descobrir ao final do período que não haverá acusações contra elas.
Isso revela um desprezo pelos procedimentos judiciais que se contrapõe de maneira clara à continuada pretensão de George W. Bush à superioridade moral, em sua "guerra contra o terrorismo".
Essa superioridade moral parece ainda mais questionável, dada a reação ao seu uso de imagens do 11 de Setembro em comerciais de TV, na sua campanha à reeleição. A exposição dos supostos bombeiros que carregavam um caixão no local do ataque como atores profissionais aprofundou a indignação pública diante da tentativa de manipular a tragédia humana para obter vantagens eleitorais.
As mortes de Madri nos relembram da necessidade de união diante dos terroristas. Não podemos arcar com a responsabilidade de alienar qualquer parcela da sociedade com respeito a essa luta, ao violarmos seus direitos democráticos, nem dividir nossos esforços, tentando tirar vantagem política do terrorismo.


Robin Cook, 58, é parlamentar trabalhista desde 1974 e foi chanceler do Reino Unido de 1997 a 2001. Este artigo foi publicado originalmente no jornal "The Independent".


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