São Paulo, domingo, 14 de março de 2004

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ARTIGO

Com chumbo nas entranhas

Denis Doyle/Associated Press
Mulher imprime as palmas de suas mãos em cartaz com a inscrição "covardes" colocado do lado de fora da estação de trens Santa Eugenia, em Madri, no dia seguinte aos atentados terroristas


ANTONIO MUÑOZ MOLINA

Quando se concorda em viver por tempo demais no delírio, o despertar é um pesadelo. O som das explosões e dos telefones tocando na manhã de março nos despertou para o pesadelo inconcebível de um crime em uma escala para a qual não existe nem sequer termo de comparação nos últimos 60 anos na Europa.
Mas não estou certo de que a crueldade desse golpe tenha sido suficiente para abrir tantos olhos e tantas consciências empenhados em não enxergar a realidade e em continuar a alimentar essa confusão espectral de delírios coletivos em que se converteu a vida pública espanhola. Que medo provoca esse telefone que toca em horas impróprias, que irrompe no sonho e na escuridão ou que salta como um disparo na claridade do amanhecer. Mas mais medo do que o telefone dão certas palavras e certos silêncios, porque as palavras matam com a mesma eficácia que os disparos, e existem silêncios tão impregnados de infâmia quanto as piores injúrias.
O que aconteceu em Madri não teria sido possível sem muitos anos de palavras envenenadas e de silêncios criminosos, de delírios coletivos que se sobrepuseram à realidade e à razão com eficácia suficiente para converter em párias aqueles que não os compartilham.
Quantos anos de doutrinação, de veneno ideológico, de putrefação moral, são precisos para que alguns tantos indivíduos nascidos em um país democrático e com alto nível de vida se vejam como membros heróicos de uma pátria oprimida e possam, com toda frieza, planejar e executar o assassinato de centenas de pessoas a quem nunca viram, mas que consideram de antemão culpadas.
Quantas vezes lhes ensinaram nas escolas, nos jornais, na televisão a desprezar e odiar esse lugar sinistro ao qual chamam "Madri", pronunciando a palavra com a adequada entonação de sarcasmo e desdém, porque nessa Madri habitam os que não são como eles, os que lhes são inferiores, os que estão do outro lado da linha divisória feroz que separa o nós e o nosso da névoa de tudo o que nos é alheio e inimigo.
O delírio foi construído friamente, foi alimentado nos livros didáticos, nos mapas, até mesmo nos púlpitos das igrejas. Celebraram-se publicamente os assassinos, e difamaram-se as vítimas. Dedicaram-se ruas aos verdugos; eles foram canonizados, como encarnações de Cristo ou de Che Guevara ou, ainda, dos dois ao mesmo tempo. E, enquanto isso, suas vítimas foram condenadas à exclusão; negou-se a elas, com afinco, até mesmo o consolo dos funerais religiosos; elas foram forçadas a cruzar na rua com os mesmos que destroçaram suas vidas.
Os que denunciavam o escândalo da perseguição e da ameaça diária no País Basco foram acusados de desmancha-prazeres e, progressivamente, foram sendo isolados na suspeita, quando não na culpa direta: acusados de extremismo, de oportunismo, de cumplicidade com a direita, até mesmo de beneficiários do dinheiro sujo do poder.
As mães, que em qualquer sociedade buscam induzir a moderação em seus filhos, nessa terra com freqüência atiçaram os seus. Os adultos, em lugar de encorajar a racionalidade nos jovens, os intoxicaram com ódio. E muitos dos que não disseram nada, dos que não fizeram nada, preferiram se calar, por comodismo ou por cinismo. Se não participaram do delírio, se instalaram confortavelmente nele. Não correm perigo, têm as mãos limpas e a consciência tranqüila. Ninguém vai acusá-los de fazer o jogo da direita.
Porque esse é outro dos delírios que tornaram tão perturbada a vida espanhola: a perversão segundo a qual é progressista o nacionalismo étnico e tribal e reacionária a defesa da Constituição e das liberdades civis, do mesmo modo que parecem e se apresentam como sendo mais de esquerda aqueles que, impudicamente, aspiram a romper a solidariedade comum, para manter os benefícios integrais de seus privilégios.
Com argumentos de superioridade racial em alguns lugares, de sofisticação cultural e política em outros, foi se criando um inimigo comum que é esse Estado central que Madri representa e personifica. Madri é o espantalho ao qual se pode atribuir a responsabilidade por qualquer opróbrio: pelo cativeiro dos bascos ou os infortúnios dos catalãos, pelo atraso da Andaluzia, pelo adiamento das Canárias, pela maré negra do Prestige ou a pobreza da Galícia.
A palavra "Madri" eu já ouvi sendo pronunciada com ódio em San Sebastián e com cultivado desdém em Barcelona. Dir-se-ia que em Madri só vivem opressores, exploradores, gente grosseira e racista cuja única obsessão, nos últimos dois séculos, tem sido conspirar contra a liberdade e o progresso das nobres populações periféricas.
É um delírio conveniente: permite a quem o nutre desfrutar das vantagens de uma inocência perfeita e de um inimigo bastante vago, mas suficientemente preciso para que se possa culpá-lo por todas nossas desgraças.
No fim, é em Madri que fica o governo central, contra o qual qualquer insulto é legítimo e que se descreve já não mais como um governo de direita, que ele é, mas como um prolongamento da ditadura franquista.
Lendo os jornais, ouvindo o rádio, alguns artistas ou literatos que se erigiram em arautos de uma suposta rebeldia popular, dir-se-ia que este governo chegou ao poder por meio de um golpe de Estado. Se disse e se escreveu que o partido que hoje governa o país é idêntico aos terroristas em seu extremismo e seu imobilismo, que é o partido daqueles que assassinaram García Lorca. Se disse, se escreveu, se repetiu qualquer coisa, misturando a verdade com a mentira, os motivos justos de discórdia e repúdio às acusações mais insensatas.
E o resultado vem sendo a ruptura dos elementos mais primordiais da concórdia civil, uma deslegitimação do Estado que não enfraquece esse governo, e sim o próprio edifício da democracia. E, nessa confusão, vemos que um tolo irresponsável que difamou a representação popular que ostentava para negociar não se sabe o que com os líderes dos assassinos aparece como um defensor da tolerância e do diálogo, vendo aumentar os votos de seu partido em plebiscito, enquanto os defensores da legalidade são retratados como perigosos extremistas.
E um homem direito e valoroso como Fernando Savater é caluniado e impedido de falar em uma universidade, enquanto cínicos que viveram confortavelmente no franquismo são envoltos num prestígio ligado à rebeldia. E uma mulher socialista que viu seu irmão ser assassinado no País Basco viaja a Madri para apresentar um livro sobre a coragem e o sofrimento de sua família, sem que um único representante público de seu partido apareça.
E o mais renomado diretor de cinema do país roda um filme sobre as mais de 30 variedades de opróbrio que nos flagelam nestes tempos, e nenhuma delas tem a ver com o terrorismo. E se denuncia a falta de liberdade de expressão e a manipulação da televisão pública sem nem sequer fazer menção àqueles que perderam a vida no norte nem aos que continuam a arriscá-la por dizer em voz alta o que pensam nem considerar censurável a manipulação dessas televisões oficiais, cuja tarefa principal é a de propagar as formas mais extremas do delírio nacionalista.
Vi de perto, em um setembro quase três anos atrás, como outra cidade era golpeada pelo terror. Mas ali não houve ninguém que não socorresse as vítimas, ninguém que tivesse a desumanidade de justificar os assassinos ou de instalar-se numa eqüidistância que tornaria quase iguais os que mataram e os que morreram, os culpados e os inocentes.
Fui testemunha de atos de uma coragem cívica que se repetiram em Madri e me dei conta de que não existe nada mais frágil do que a vida humana, nada é mais fácil de destruir do que os mecanismos delicados que mantêm em funcionamento uma cidade, as pessoas de bem que vão ao trabalho todas as manhãs e que não têm culpa dos delírios homicidas, dos fantasmas sanguinários que nascem do fanatismo religioso ou ideológico.
Dois anos atrás, um dos mais desalmados envenenadores da convivência democrática na Espanha declarou, com sua habitual careta de desprezo, falando do "Guernica", de Picasso, que "aos bascos deram as bombas, e os quadros foram dados "ao pessoal de Madri'". Agora Madri sofreu uma calamidade tão criminosa quanto as que os bombardeios da aviação fascista provocavam durante a guerra -percebe-se que, afinal, algumas bombas também foram parar conosco e que, como então, elas se alimentam dos bairros pobres, dos trabalhadores, dos mais inocentes.
Em novembro de 1936, segundo o poema de Antonio Machado, Madri sorria "com chumbo nas entranhas" e, em meio à dor, era a fortaleza popular que resistia bravamente contra a agressão do fascismo. Há chumbo demais, estilhaços de bombas demais nas entranhas populares desta Madri que madrugava para as obrigações e a dignidade do trabalho, para o heroísmo menor de todos os dias, quando os emissários do crime atacaram a cidade com uma fria decisão genocida.
Mas gostaríamos que esse pesadelo tão amargo e real servisse ao menos para dissipar de algumas consciências a névoa do delírio: para que não se continuem a repetir tantas palavras que envenenam, tantos silêncios de cinismo, tantas mentiras, tanta frivolidade intelectual e política. Como aquele 11 de Setembro, talvez a facilidade espantosa da destruição nos ajude a tomar consciência do valor do que temos, do quão preciosa e frágil é essa trama de atos, de costumes, de tarefas, de subentendidos, de concessões mútuas, que forma a própria matéria da vida e da liberdade humana.
Não esqueceremos e não perdoaremos. Não deixaremos que nenhum assassino se esconda na impunidade, que o rosto ou a identidade de nenhuma vítima se apague no anonimato dos números. É uma promessa que faço a mim mesmo: não permitirei que ninguém, em minha presença, difame ou coloque em dúvida a dignidade daqueles que agora sofrem, não aceitarei mais palavras enganosas ou cínicas que tornem turva a linha clara que separa inocentes e verdugos, não me aproximarei de ninguém de quem suspeite que tenha se contaminado com sua proximidade.


Antonio Muñoz Molina, 48, é um premiado escritor espanhol, autor de "Sefarad" (publicado no Brasil pela Companhia das Letras). Este artigo foi publicado no jornal "El País" antes de ganhar força a hipótese de envolvimento de extremistas islâmicos nos atentados.

Tradução de Clara Allain


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