São Paulo, segunda-feira, 14 de maio de 2007

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Sob a sombra de Ataturk

VINCENT BOLAND
DO "FINANCIAL TIMES", EM ANCARA

Ao longo da história, generais evocaram Deus ou Alá antes de batalhas decisivas. Na Turquia moderna, o Exército invoca Mustafá Kemal Ataturk. A batalha na qual se lançam os defensores do secularismo -militares inclusive- sobre a possível elevação de um homem de passado islâmico à Presidência remete ao cerne da visão que a Turquia tem de si mesma como nação européia moderna.
A questão dividiu o país e levantou a discussão sobre como ou se a Turquia pode reconciliar seus princípios fundadores, decididamente seculares, com suas práticas democráticas e com a visibilidade crescente de sua identidade muçulmana.
Democracia e secularismo -conceitos que, no Ocidente, parecem ser complementares- estão cada vez mais às turras na Turquia. À medida que a política turca se torna mais democrática e representativa da grande massa de uma sociedade profundamente conservadora, o conflito se torna mais urgente. Ele dará, sem dúvida, o tom das eleições de julho.
Para muitos turcos, o mausoléu de Ataturk em Ancara -legado do militar e estadista que fundou a República da Turquia em 1923, a partir das ruínas do Império Otomano- tornou-se uma espécie de catedral da religião não-oficial do país, a manifestação física do secularismo.
"O secularismo é o elemento que melhor define a criação da República", diz Omer Faruk Genckaya, professor de política na Universidade Bilkent. "É um tipo de religião na Turquia, tão importante como o islã."

Paradoxo
A idéia do secularismo como religião é paradoxal, mas ajuda a explicar a idéia singular do que realmente significa o secularismo turco. Nos países democráticos maduros, o sistema secular quer dizer uma separação rígida entre religião e Estado, acompanhada pela liberdade absoluta de adoração e crenças religiosas. Na Turquia, o secularismo vai além, abrangendo a idéia francesa do laicismo.
Numa coluna de jornal no mês passado, o acadêmico e comentarista Omer Taspinar argumentou que a recente declaração dos militares de que fariam o que fosse necessário para garantir o secularismo reflete essa visão jacobina.
O establishment militar se enxerga como guardião último do ideal secular e nunca hesitou em intervir quando acreditou que as coisas estivessem tomando o rumo errado. Taspinar comparou a atitude do Exército com os imãs ao anticlericalismo da Terceira República francesa. "Aquilo pelo qual a França passou naquela época se assemelha, sob muitos aspectos, ao processo pelo qual a República Turca passa hoje."
Ural Akbulut, reitor da Universidade Técnica do Oriente Médio e um dos principais kemalistas da Turquia, explicou o problema nos seguintes termos: "Se não tivéssemos o secularismo, não teríamos democracia. Para os turcos, primeiro há a nação, depois o secularismo, depois a democracia."
Para alguns observadores, se o partido do governo, o AK, tem uma agenda oculta para solapar o secularismo, ela se mantém bem escondida após quatro anos de escrutínio intenso.
A verdadeira ameaça ao modo de vida do cidadão turco médio, dizem, viria não de cima, mas de baixo -enquanto o premiê Recep Tayyp Erdogan tem se chocado com obstáculos constitucionais a cada iniciativa sua, autoridades locais nas grandes faixas da administração pública turca controladas pelo AK não sofrem os mesmos empecilhos.
Grande parte dos 72 milhões de habitantes da Turquia vive na zona rural e é religiosa. À medida que o país vai se tornando mais democrático -em resposta aos avanços sociais internos e à pressão da União Européia-, é muito provável que a identidade muçulmana se torne mais e mais pronunciada.
Para alguns analistas, ainda é cedo para a Turquia elevar a democracia a um status superior ao do secularismo, já que este não tem sua posição garantida.
Como sugere Akbulut, a Turquia vem combatendo o islã radical desde a fundação do Império Otomano, e a luta ainda não foi vencida. "Não é muito fácil para a população turca acreditar que o secularismo esteja de alguma maneira garantido no país depois de apenas 80 anos"", diz ele. "Veja o caso do Irã. Eu me lembro de quando o Irã era um país secular. Oitenta anos é um período muito curto na vida de um país."


Tradução de CLARA ALLAIN


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