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Sob a sombra de Ataturk
VINCENT BOLAND
DO "FINANCIAL TIMES", EM ANCARA
Ao longo da história, generais
evocaram Deus ou Alá antes de
batalhas decisivas. Na Turquia
moderna, o Exército invoca
Mustafá Kemal Ataturk. A batalha na qual se lançam os defensores do secularismo -militares inclusive- sobre a possível elevação de um homem de
passado islâmico à Presidência
remete ao cerne da visão que a
Turquia tem de si mesma como
nação européia moderna.
A questão dividiu o país e levantou a discussão sobre como
ou se a Turquia pode reconciliar seus princípios fundadores,
decididamente seculares, com
suas práticas democráticas e
com a visibilidade crescente de
sua identidade muçulmana.
Democracia e secularismo
-conceitos que, no Ocidente,
parecem ser complementares- estão cada vez mais às turras na Turquia. À medida que a
política turca se torna mais democrática e representativa da
grande massa de uma sociedade profundamente conservadora, o conflito se torna mais
urgente. Ele dará, sem dúvida, o
tom das eleições de julho.
Para muitos turcos, o mausoléu de Ataturk em Ancara -legado do militar e estadista que
fundou a República da Turquia
em 1923, a partir das ruínas do
Império Otomano- tornou-se
uma espécie de catedral da religião não-oficial do país, a manifestação física do secularismo.
"O secularismo é o elemento
que melhor define a criação da
República", diz Omer Faruk
Genckaya, professor de política
na Universidade Bilkent. "É um
tipo de religião na Turquia, tão
importante como o islã."
Paradoxo
A idéia do secularismo como
religião é paradoxal, mas ajuda
a explicar a idéia singular do
que realmente significa o secularismo turco. Nos países democráticos maduros, o sistema
secular quer dizer uma separação rígida entre religião e Estado, acompanhada pela liberdade absoluta de adoração e crenças religiosas. Na Turquia, o secularismo vai além, abrangendo a idéia francesa do laicismo.
Numa coluna de jornal no
mês passado, o acadêmico e comentarista Omer Taspinar argumentou que a recente declaração dos militares de que fariam o que fosse necessário para garantir o secularismo reflete essa visão jacobina.
O establishment militar se
enxerga como guardião último
do ideal secular e nunca hesitou em intervir quando acreditou que as coisas estivessem tomando o rumo errado. Taspinar comparou a atitude do
Exército com os imãs ao anticlericalismo da Terceira República francesa. "Aquilo pelo
qual a França passou naquela
época se assemelha, sob muitos
aspectos, ao processo pelo qual
a República Turca passa hoje."
Ural Akbulut, reitor da Universidade Técnica do Oriente
Médio e um dos principais kemalistas da Turquia, explicou o
problema nos seguintes termos: "Se não tivéssemos o secularismo, não teríamos democracia. Para os turcos, primeiro
há a nação, depois o secularismo, depois a democracia."
Para alguns observadores, se
o partido do governo, o AK, tem
uma agenda oculta para solapar
o secularismo, ela se mantém
bem escondida após quatro
anos de escrutínio intenso.
A verdadeira ameaça ao modo de vida do cidadão turco médio, dizem, viria não de cima,
mas de baixo -enquanto o premiê Recep Tayyp Erdogan tem
se chocado com obstáculos
constitucionais a cada iniciativa sua, autoridades locais nas
grandes faixas da administração pública turca controladas
pelo AK não sofrem os mesmos
empecilhos.
Grande parte dos 72 milhões
de habitantes da Turquia vive
na zona rural e é religiosa. À
medida que o país vai se tornando mais democrático -em
resposta aos avanços sociais internos e à pressão da União Européia-, é muito provável que
a identidade muçulmana se
torne mais e mais pronunciada.
Para alguns analistas, ainda é
cedo para a Turquia elevar a democracia a um status superior
ao do secularismo, já que este
não tem sua posição garantida.
Como sugere Akbulut, a Turquia vem combatendo o islã radical desde a fundação do Império Otomano, e a luta ainda
não foi vencida. "Não é muito
fácil para a população turca
acreditar que o secularismo esteja de alguma maneira garantido no país depois de apenas
80 anos"", diz ele. "Veja o caso
do Irã. Eu me lembro de quando o Irã era um país secular. Oitenta anos é um período muito
curto na vida de um país."
Tradução de CLARA ALLAIN
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