São Paulo, domingo, 14 de junho de 2009

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Teólogo cobra que islã assuma seus erros

Pensador islâmico Tariq Ramadan recomenda a muçulmanos "fim da mentalidade de vítima", mas critica europeus

Intelectual elogia discurso de Obama e afirma que, quanto maior for a participação dos cristãos, menos religioso será o debate na questão israelo-palestina

SAMY ADGHIRNI
DA REPORTAGEM LOCAL

Um dos maiores pensadores islâmicos, Tariq Ramadan disse em entrevista à Folha, por telefone desde seu escritório em Paris, que a desconfiança entre islã e Ocidente remonta à época em que o mundo muçulmano era uma força dominante.
Ramadan rebateu acusações de parte da mídia europeia, que o acusa de ser um extremista disfarçado de erudito.

 

ISLÃ X OCIDENTE
Existe um trauma profundo, cuja origem está numa relação de poder que remonta aos séculos 9 e 10. Naquela época, o mundo muçulmano dominava e se expandia. Num certo momento, a Europa se desenvolveu economicamente e, no seu passivo intelectual, ignorou a contribuição muçulmana. Os europeus reduziram o papel dos árabes na História ao de meros tradutores ou comentaristas dos gregos.
Na minha condição de muçulmano europeu, percebo certa resistência em reconhecer o islã como religião europeia. É um erro científico e histórico dizer que as raízes do Ocidente são somente gregas ou cristãs.
Mas algo novo está em andamento, acarretado pela massa. O Canadá, os EUA, a Europa, a Austrália têm uma nova presença de milhões de pessoas. Obama entendeu que era preciso encarar esse fato. Daí o discurso includente que ele fez no Cairo. Os muçulmanos ocidentais terão um papel importantíssimo nesse processo.

ACENOS DE OBAMA
Foi uma verdadeira ruptura com a era Bush. E, ao contrário do que se diz, não foi um discurso voltado para os muçulmanos. Foi uma fala sobre os muçulmanos, mas voltada para o mundo todo. Obama chegou a dizer que o islã é uma religião americana, e que os EUA eram uma grande nação muçulmana.
Com isso, ele está dizendo ao seu país: "vocês devem se informar sobre o islã, é uma riqueza, na minha infância eu percebi os seus ensinamentos igualitários". É uma tentativa de alertar que não se pode, em nome do liberalismo, impor maneiras de pensar ou de se vestir.
Aos muçulmanos, ele diz: "sejamos parceiros e trabalhemos juntos em várias áreas". Ele cria um "nós" comum.
Mas no plano político, as questões israelo-palestina, iraquiana-iraniana e afegã continuam sendo tratadas com o discurso típico de um presidente americano. Nenhuma palavra foi dita sobre a ofensiva que matou 2.000 pessoas, quase todas civis, em Gaza.

ISLAMOFOBIA
À chegada ao poder de Obama nos EUA se opõe a realidade da Europa, onde a extrema direita se torna cada vez mais forte. Isso é resultado do medo da nova presença imigrante.
É preciso, no entanto, deixar claro que não há sobrevivência econômica para os países ocidentais sem presença imigrante. Eles precisam de imigração, mas enfrentam resistência cultural. Há partidos que instrumentalizam e tiram proveito desse medo em todo o Ocidente. Bush era parte disso.
É preciso respeitar o medo dos cidadãos e abrir diálogo profundo sobre a possibilidade de viver juntos. Há muçulmanos e cristãos dogmáticos.
A melhor maneira de os muçulmanos responderem à mão estendida por Obama é pararem com a mentalidade de vítima. Não se deve esperar de um único homem que ele mude tudo. Cabe a nós fazer a nossa parte e encarar nossas falhas.

"FALHAS" NO ISLÃ
Os exemplos são a violência extremista, a Al Qaeda, a discriminação das mulheres, a corrupção, as ditaduras laicas ou religiosas, a falta de investimento em educação etc.
Isso dito, é preciso ponderar o papel dos movimentos políticos e situá-los cada um em seu contexto. Há enormes diferenças entre a Al Qaeda, que merece condenação em cada uma de suas ações, e movimentos de resistência como o Hizbollah e o Hamas, com os quais se pode estar em desacordo, mas que têm legitimidade nacional.

ISRAEL E PALESTINOS
O conflito israelo-palestino reúne todos os componentes do que poderia ser um conflito de civilizações. Há uma ideia comum, segundo a qual os judeus são a linha de frente do Ocidente, diante dos muçulmanos. O governo Bush batia muito nesta tecla. Os israelenses também. A ex-chanceler Tzipi Livni apresentou-se à França como a primeira barreira de proteção contra "algo" que poderia atingir o Ocidente.
Mas Obama foi muito pertinente ao não reduzir o conflito a uma questão religiosa. Quando ele fala dos palestinos, se refere a cristãos e a muçulmanos.

APELO AOS CRISTÃOS
Sempre digo ao papa Bento 16 que é cada vez mais necessária uma voz cristã para reconhecer os direitos legítimos dos palestinos e admitir o fato de que cristãos estão indo embora por não aguentarem mais. Os cristãos não estão deixando a Terra Santa por causa dos muçulmanos, mas por causa da falta de um discurso cristão mais incisivo cobrando direito legal de prática religiosa.
É porque os cristãos estão indo embora que o conflito acaba parecendo islã x judaísmo, islã x Ocidente. Outras vozes religiosas são indispensáveis para evidenciar o caráter político do conflito. Quanto mais vozes religiosas tivermos, menos religioso ele será.

CONTROVÉRSIA
Incomodo muita gente, pois não me encaixo no perfil padrão do estrangeiro que não fala inglês ou francês. E tenho um discurso crítico contra os dois lados. Sou proibido de entrar nos EUA, mas também em seis países árabes. Sou o intelectual visível que vira saco de pancadas de todos.
Quando fui professor de ensino médio, ficava abismado com os valores passados às crianças, sempre encorajadas a ser os primeiros da sala. Como é possível nutrir a solidariedade quando se cresce norteado pelo pensamento seletivo?
Também sou crítico disso, e meu último livro não é sobre o islã, mas sobre filosofia geral. Um jornalista francês veio me entrevistar sobre a obra e me perguntou se eu ainda era muçulmano. Ou seja, na cabeça deste jornalista, o muçulmano só deveria falar de sua religião. Sua fé é questionada assim que ele toca em assuntos de filosofia geral.


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