São Paulo, sábado, 14 de setembro de 2002

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ANÁLISE

Falta a Bush provar por que a guerra é tão urgente

NICHOLAS D. KRISTOF
DO ""THE NEW YORK TIMES"

O presidente Bush ofereceu anteontem argumentos eloquentes e convincentes para explicar por que a ONU deve cobrar responsabilidade de Saddam Hussein.
Houve só um problema: ele não citou provas de ameaça imediata nem nenhuma razão pela qual invadir o Iraque seja hoje mais urgente do que era, por exemplo, em 2000, quando Bush, então candidato, falava mal de Saddam, mas em nenhum momento comunicou aos eleitores qualquer plano de invasão do Iraque.
Há meses vem se falando em informações que a administração teria obtido sobre uma ameaça iraquiana imediata e sobre ligações do Iraque com o terrorismo. Assim, foi decepcionante ouvir, mais uma vez, que Saddam é um monstro cujo regime tortura crianças na frente dos pais delas. É tudo verdade -tão verdade quanto já era, dez anos atrás.
Vale contrastar o discurso de Bush com um momento legendário ocorrido na ONU. Em 25 de outubro de 1962, o embaixador americano Adlai Stevenson denunciou as novas plataformas de mísseis russos em Cuba. Russos e cubanos zombaram, dizendo que era tudo mentira. Stevenson mandou vir um cavalete e pregou nele fotos ampliadas das plataformas cubanas. Onde estão as provas da urgência atual?
Foi o governo Bush que mencionou o paralelo com a crise dos mísseis, observando que Kennedy chegou a considerar a hipótese de lançar ataques preventivos. É verdade. Mas o que mais chama a atenção são as diferenças entre as situações. Para começo de conversa, Kennedy utilizou o destaque proporcionado pela ONU para mostrar provas específicas e incontroversas de uma ameaça nova e urgente -e depois optou, não pela invasão de Cuba, mas por uma quarentena naval.
""Sim, é verdade que Kennedy ponderou várias alternativas, inclusive militares", lembrou Theodore Sorensen, um dos assessores-chave do presidente durante a crise. ""Mas, depois de levar em conta os civis inocentes que seriam mortos e a lei internacional que seria infringida, ele rejeitou essa possibilidade."
Kennedy tinha plena consciência do fato de que guerras podem facilmente sair do controle. Sorensen se recorda de ver Kennedy dizendo a seus assessores que não queria que gerações futuras perguntassem como a crise dos mísseis se transformara em guerra, sem que alguém tivesse uma resposta convincente.
Em seu discurso de ontem, Bush demonstrou a mesma garra e até a mesma eloquência de Kennedy. Mas não deu mostras das outras qualidades que fazem um estadista: humildade quanto ao risco de cometer erros de cálculo e o desejo de evitar guerras.
Graham Allison, professor da Escola Kennedy de Governo de Harvard, observou que Kennedy estipulou que os mísseis teriam, obrigatoriamente, de ser tirados de Cuba. Primeiro, porém, ele tentou a diplomacia e o bloqueio. Ofereceu aos russos uma saída elegante. Com isso, evitou o mergulho no desconhecido.
Por que a guerra não poderia, também hoje, ser um recurso derradeiro, em lugar de ser a primeira ferramenta que Bush vai procurar na prateleira?
""A pergunta fundamental continua sem resposta: por que lançar uma guerra contra Saddam seria melhor do que a opção seguinte, que consiste em contê-lo", disse Allison. ""Podemos concordar que se trata de uma pessoa maligna, que desafiou resoluções da ONU, e, mesmo assim, perguntar por que ele não pode receber o mesmo tratamento usado contra Stálin, que também era maligno, perigoso e enganador."
Uma sucessão de presidentes americanos optou por conter Stálin, em lugar de invadir e ocupar a Rússia, assim como cada presidente americano até agora optou por conter Saddam.
Antes de lançar uma guerra, Bush ainda precisa demonstrar duas coisas: em primeiro lugar, que a ameaça é tão urgente que deixar o Iraque continuar como está é até mais arriscado do que invadir e ocupar o país por muitos anos futuros; em segundo, que a dissuasão já não será o suficiente para conter Saddam.
Como J.F.K. teria lidado com o Iraque? ""Na condição de alguém que acredita na ONU, ele teria feito todo o possível, por meio do poder de persuasão dos EUA, para colocar os inspetores da ONU dentro do Iraque", acredita Sorensen. Uma abordagem desse tipo, em estilo Kennedy, construída em torno de inspeções internacionais robustas respaldadas pela ameaça de recurso à força em última instância, também reduziria as consequências da guerra.
Infelizmente, ainda não ouvimos de Bush argumentos convincentes que justifiquem a única ação com a qual ele parece estar obcecado: a guerra imediata.


Tradução de Clara Allain


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