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ANÁLISE
Falta a Bush provar por que a guerra é tão urgente
NICHOLAS D. KRISTOF
DO ""THE NEW YORK TIMES"
O presidente Bush ofereceu anteontem argumentos eloquentes e
convincentes para explicar por
que a ONU deve cobrar responsabilidade de Saddam Hussein.
Houve só um problema: ele não
citou provas de ameaça imediata
nem nenhuma razão pela qual invadir o Iraque seja hoje mais urgente do que era, por exemplo,
em 2000, quando Bush, então
candidato, falava mal de Saddam,
mas em nenhum momento comunicou aos eleitores qualquer
plano de invasão do Iraque.
Há meses vem se falando em informações que a administração
teria obtido sobre uma ameaça
iraquiana imediata e sobre ligações do Iraque com o terrorismo.
Assim, foi decepcionante ouvir,
mais uma vez, que Saddam é um
monstro cujo regime tortura
crianças na frente dos pais delas. É
tudo verdade -tão verdade
quanto já era, dez anos atrás.
Vale contrastar o discurso de
Bush com um momento legendário ocorrido na ONU. Em 25 de
outubro de 1962, o embaixador
americano Adlai Stevenson denunciou as novas plataformas de
mísseis russos em Cuba. Russos e
cubanos zombaram, dizendo que
era tudo mentira. Stevenson mandou vir um cavalete e pregou nele
fotos ampliadas das plataformas
cubanas. Onde estão as provas da
urgência atual?
Foi o governo Bush que mencionou o paralelo com a crise dos
mísseis, observando que Kennedy chegou a considerar a hipótese de lançar ataques preventivos. É verdade. Mas o que mais
chama a atenção são as diferenças
entre as situações. Para começo
de conversa, Kennedy utilizou o
destaque proporcionado pela
ONU para mostrar provas específicas e incontroversas de uma
ameaça nova e urgente -e depois
optou, não pela invasão de Cuba,
mas por uma quarentena naval.
""Sim, é verdade que Kennedy
ponderou várias alternativas, inclusive militares", lembrou Theodore Sorensen, um dos assessores-chave do presidente durante a
crise. ""Mas, depois de levar em
conta os civis inocentes que seriam mortos e a lei internacional
que seria infringida, ele rejeitou
essa possibilidade."
Kennedy tinha plena consciência do fato de que guerras podem
facilmente sair do controle. Sorensen se recorda de ver Kennedy
dizendo a seus assessores que não
queria que gerações futuras perguntassem como a crise dos mísseis se transformara em guerra,
sem que alguém tivesse uma resposta convincente.
Em seu discurso de ontem,
Bush demonstrou a mesma garra
e até a mesma eloquência de Kennedy. Mas não deu mostras das
outras qualidades que fazem um
estadista: humildade quanto ao
risco de cometer erros de cálculo e
o desejo de evitar guerras.
Graham Allison, professor da
Escola Kennedy de Governo de
Harvard, observou que Kennedy
estipulou que os mísseis teriam,
obrigatoriamente, de ser tirados
de Cuba. Primeiro, porém, ele
tentou a diplomacia e o bloqueio.
Ofereceu aos russos uma saída
elegante. Com isso, evitou o mergulho no desconhecido.
Por que a guerra não poderia,
também hoje, ser um recurso derradeiro, em lugar de ser a primeira ferramenta que Bush vai procurar na prateleira?
""A pergunta fundamental continua sem resposta: por que lançar uma guerra contra Saddam
seria melhor do que a opção seguinte, que consiste em contê-lo",
disse Allison. ""Podemos concordar que se trata de uma pessoa
maligna, que desafiou resoluções
da ONU, e, mesmo assim, perguntar por que ele não pode receber o mesmo tratamento usado
contra Stálin, que também era
maligno, perigoso e enganador."
Uma sucessão de presidentes
americanos optou por conter Stálin, em lugar de invadir e ocupar a
Rússia, assim como cada presidente americano até agora optou
por conter Saddam.
Antes de lançar uma guerra,
Bush ainda precisa demonstrar
duas coisas: em primeiro lugar,
que a ameaça é tão urgente que
deixar o Iraque continuar como
está é até mais arriscado do que
invadir e ocupar o país por muitos anos futuros; em segundo, que
a dissuasão já não será o suficiente
para conter Saddam.
Como J.F.K. teria lidado com o
Iraque? ""Na condição de alguém
que acredita na ONU, ele teria feito todo o possível, por meio do
poder de persuasão dos EUA, para colocar os inspetores da ONU
dentro do Iraque", acredita Sorensen. Uma abordagem desse tipo, em estilo Kennedy, construída
em torno de inspeções internacionais robustas respaldadas pela
ameaça de recurso à força em última instância, também reduziria
as consequências da guerra.
Infelizmente, ainda não ouvimos de Bush argumentos convincentes que justifiquem a única ação com a qual ele parece estar obcecado: a guerra imediata.
Tradução de Clara Allain
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