São Paulo, domingo, 14 de outubro de 2007

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ARTIGO

Cobiça e perda no Iraque

Como o plano do governo George W. Bush para se apoderar do petróleo do país escoou pelo ralo diluído em protecionismo, legislação internacional e atentados

DILIP HIRO
DA "NATION"

É esta a sentença em "A Era da Turbulência", o livro de memórias do ex-diretor do Banco Central americano Alan Greenspan, que causou tanta turbulência em Washington: "Entristece-me o fato de que é politicamente inconveniente admitir o que todos sabem: a guerra do Iraque é motivada em grande medida pelo petróleo". A afirmação tinha a ressonância do mantra da campanha eleitoral de Bill Clinton - "É a economia, estúpido".
Ao descobrir-se alvo de um ataque da Casa Branca, Greenspan voltou atrás. Nada disso, entretanto, fez qualquer diferença aos fatos reais.
As evidências primárias indicando que o governo Bush cobiçou o petróleo do Iraque desde o primeiro momento vêm de duas fontes: Paul O'Neill, ex-secretário do Tesouro (2001-2003), e Falah al Jibury, um consultor petroleiro que atuou como "canal de comunicação" entre o presidente Ronald Reagan e Saddam Hussein durante a Guerra Irã-Iraque (1980-88).
No livro de memórias de O'Neill está registrado que ele recebeu em 2002 um documento da Agência de Inteligência da Defesa que mapeava os campos petrolíferos do país e suas áreas de exploração. O documento listava grandes petroleiras americanas que teriam interesse em atuar no Iraque.
Em janeiro de 2003, foi divulgado um plano para o petróleo iraquiano esboçado pelo Departamento de Estado. A estratégia recomendava que fosse mantida a Companhia Petrolífera Nacional do Iraque, mas que ela fosse aberta a investimentos estrangeiros após um período inicial.

Enfraquecer Opep
Sem o conhecimento desse plano, segundo disse em 2005 o consultor Falah al Jibury à rede britânica BBC, o Pentágono tinha traçado o seu próprio. Ele envolvia a venda de todos os campos de petróleo do Iraque, visando aumentar a produção para um nível superior à cota determinada pela Opep (Organização dos Países Exportadores de Petróleo), enfraquecendo o cartel.
No fim de 2002, como revelaria a colunista do "New York Times" Maureen Dowd, a Halliburton, empresa antes chefiada pelo vice-presidente Dick Cheney, preparara um documento confidencial de 500 páginas sobre como lidar com a indústria petroleira iraquiana após uma invasão e ocupação do Iraque.
Quando as tropas anglo-americanas invadiram o Iraque, em março de 2003, esperavam ver poços petrolíferos em chamas. Mas Saddam, nacionalista irredutível, não queria ficar para a história como o homem que prejudicara o recurso natural mais precioso do país.
Ao entrarem em Bagdá, as tropas americanas ficaram assistindo enquanto saqueadores pilhavam prédios públicos -exceto o Ministério do Petróleo, que protegeram com afinco. Nos dias seguintes, o esquema para a venda dos campos petrolíferos recebeu luz verde.
A Casa Branca não ocultou seus planos de rapidamente desmontar o setor público iraquiano. Quando o primeiro pró-cônsul americano, o general da reserva Jay Garner, concentrou-se em promover eleições locais, ele foi demitido. O sucessor de Garner, Paul Bremer, se viu tendo que tratar com Philip Carroll -ex-executivo da anglo-holandesa Royal Dutch Shell-, indicado por Washington para ser o chefe supremo do setor petrolífero iraquiano. Carroll decidiu não mexer com a propriedade da indústria e disse isso a Bremer.
"Não haveria privatização dos recursos enquanto eu estivesse envolvido", disse Carroll à BBC em 17 de março de 2005.

Atentados
Mas essa foi uma explicação apenas parcial da razão pela qual Bremer excluiu o setor petroleiro quando, em setembro de 2003, privatizou quase 200 empresas iraquianas, abrindo-as ao controle 100% estrangeiro. A Casa Branca já se dera conta de que desnacionalizar a indústria petroleira violaria a Convenção de Genebra, que proíbe uma potência ocupante de modificar a estrutura básica da economia de um território.
Havia ainda o problema de entender os 30 maiores contratos assinados pelo regime de Saddam com empresas do Canadá, China, França, Índia, Itália, Rússia, Espanha e Vietnã. Elas tinham firmado acordos com o governo que caíra ou com a República do Iraque, ainda intacta?
Talvez mais importante foi a posição assumida pelo aiatolá Ali Sistani, o mais influente clérigo xiita do país. Ele não fez segredo de que desaprovava a privatização. Sistani declarou que os recursos minerais pertenciam à "comunidade" (o Estado). Ainda mais eficaz foi a reação violenta dos empregados do setor. Em entrevista à BBC, Jibury disse: "Vimos um aumento dos ataques contra instalações petrolíferas, motivado pela premissa de que a privatização estaria a caminho".
A ratificação da nova Constituição iraquiana pelo referendo de 2005 acabou com a perspectiva de privatização plena do setor. O artigo 109 afirma que os hidrocarbonetos são "propriedade nacional iraquiana".
Em fevereiro de 2007, como previsto na Constituição, o projeto da lei dos hidrocarbonetos submetido ao Parlamento pelo governo iraquiano manteve o petróleo e o gás no setor público. Ele também estipulou a recriação de uma estatal que seria encarregada de distribuir a receita petrolífera entre as Províncias, em base per capita.
O governo Bush aproveitou esse dispositivo para retratar a lei como crucial para a reconciliação entre sunitas e xiitas. O que realmente interessava à Casa Branca eram os atraentes incentivos contidos no projeto de lei para empresas estrangeiras investirem no Iraque. Assim, Bush pressionou em vão Bagdá a aprovar a lei antes de agosto, recesso parlamentar.
O fracasso do governo Bush em alcançar seus objetivos de curto prazo não nega o fato de que conseguir o acesso privilegiado de empresas americanas ao petróleo iraquiano foi um objetivo principal da invasão.


DILIP HIRO é autor de vários livros sobre o Oriente Médio, incluindo "Blood of the Earth: The Battle for the World's Vanishing Oil Resources" (Sangue da terra: a batalha pelos recursos petrolíferos minguantes do mundo)

Tradução da CLARA ALLAIN


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