São Paulo, domingo, 15 de fevereiro de 2004

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ARTIGO

EUA adotam hipocrisia como método

Leia a seguir a continuação do artigo de Paul Krugman.

Outra explicação do sucesso da dinastia Bush, conforme Phillips, é seu desempenho irretocável em ocultar suas verdadeiras intenções: "Se a hipocrisia é o tributo que o vício paga à virtude, o conservadorismo com compaixão é a política que a hipocrisia emprega para ocultar seus vícios econômicos. Embora tenha demorado três gerações para ser adotada, essa adesão retórica dos Bushes se vem revelando cada vez menos como uma atitude compensatória a ser adotada pelas classes elevadas e cada vez mais como falsificação pura e simples: dizer uma coisa e fazer o oposto".
O novo livro de Ron Suskind, "The Price of Loyalty" (o preço da lealdade), por sua vez, oferece um retrato devastador dos métodos políticos de Bush e se encaixa perfeitamente à análise de Phillips sobre os motivos do presidente. A principal virtude do livro, que se baseia parcialmente nas revelações de Paul O'Neill, ex-secretário do Tesouro de Bush, é o que ele tem a dizer sobre os valores e o modo de operação do governo.
Comecemos pelo princípio -uma discussão de política econômica em novembro de 2002, pouco antes da demissão de O'Neill. Lembrem-se de que 2002 foi o ano dos escândalos em grandes empresas; por um breve período, as revelações de trapaças na Enron, na WorldCom e em outros pilares da economia pareciam destinadas a dominar o cenário na corrida para as eleições de meio de mandato. O governo preferiu rufar os tambores da guerra e abafar a questão.
Ainda assim, os funcionários continuavam preocupados com a lentidão da economia. Mas qual era a causa dessa lentidão? O presidente, de acordo com o secretário do Tesouro, tinha uma resposta simples: "Poder demais para a SEC [órgão que fiscaliza o mercado financeiro nos EUA]". Ou seja, aqueles malvados fiscais, em sua tentativa de reprimir os delitos das grandes empresas, estavam deixando os executivos e os investidores nervosos e causavam depressão na economia.
Eis como Suskind descreve o momento: "O'Neill não conseguia acreditar no que estava ouvindo -poder demais para a SEC? Não admira que a Casa Branca tenha retirado seu apoio a punições severas para os executivos trapaceiros e entregado a liderança do debate sobre governança corporativa ao Congresso".
Kevin Phillips seria capaz de explicar o caso, evidentemente: Bush, cuja carreira empresarial envolveu alguns "momentos Enron", estava revelando sua simpatia instintiva, hereditária, de fato, pelos líderes empresariais e sua antipatia por qualquer instituição que tente lhes impor um mínimo de responsabilidade.
Além do relato desse espantoso rompante de Bush, o que a descrição do encontro por Suskind nos revela é que, entre eles, os principais funcionários do governo admitem aquilo que negam veementemente ao responder aos críticos externos.
Sabiam que estavam sendo irresponsáveis em termos fiscais, mas, em público, as declarações do governo eram exatamente o oposto. Bush talvez se preocupasse, em particular, com a possibilidade de que seu plano tributário favorecesse demais os ricos, mas em público insistia em que "a vasta maioria do corte de impostos beneficia a base do espectro tributário". Em particular, Dick Cheney disse a O'Neill que "Reagan provou que déficits não importam". Em público, ele se descreveu como "um sujeito linha dura, no que tange ao déficit".
Assim, Phillips está certo: o governo Bush demonstra profunda hipocrisia no que tange às suas principais políticas; o que diz contraria não só aquilo que faz, mas aquilo que realmente pensa. Então, o que conduz de fato suas decisões estratégicas?
John Dilulio, ex-diretor do programa de "iniciativas comunitárias e de base religiosa" da Casa Branca, disse a Suskind em 2002: "Não há precedentes em nenhuma Casa Branca da era moderna para o que está acontecendo aqui: a falta completa de um aparato estratégico. O que temos é tudo -e quero dizer literalmente tudo- dirigido pela ala política".
O'Neill vai além. Considerem, por exemplo, aquilo que pode vir a ser considerada a mais comprometedora das decisões de Bush: abandonar o Protocolo de Kyoto e, na prática, abandonar qualquer tentativa de enfrentar o aquecimento global. O relato de O'Neill deixa claro que ninguém tentou estabelecer quais eram os fatos, que vantagens e desvantagens estariam envolvidas na adesão ou na rejeição do tratado. Em lugar disso, "as preocupações do setor de energia e as arengas sem base firme do lobby do setor eclipsaram as considerações quanto à ação sobre o aquecimento global. Ponto". Ou, como O'Neill resume essa abordagem política: "A base (ou seja, a base republicana de Bush) quer que as coisas sejam assim, e quem sabe estejam certos".
O que emerge do livro de Suskind é um quadro de um governo inteiramente cínico -muito mais cínico que o de Nixon, no qual a corrupção era localizada e boa parte do processo político continuava a ser gerida por gente séria, até mesmo idealista. Sob Bush, ao que parece, a retórica política não tem nenhuma relação com a realidade -o que os funcionários dizem não tem nada a ver com o que fazem, ou com o que pensam. E as decisões estratégicas são dirigidas inteiramente pela política, por aquilo que a ala política acredita que vá soar bem "junto às bases".
Mas, nesse caso, qual é a finalidade? Se tudo o que Bush e seu governo fazem é político, o que querem conquistar com seu poder?
Os republicanos tradicionalistas que conheço se apegam à crença de que o maquiavelismo é apenas temporário e que foi adotado para servir a um objetivo mais elevado. Assim que a eleição de 2004 tiver sido vencida, dizem, Bush mostrará suas verdadeiras cores como idealista, como alguém que de fato acredita em governo pequeno e em livre mercado.
Mas, se Phillips estiver certo, e creio que esteja, não existe objetivo mais elevado. As motivações de Bush são dinásticas -garantir o lugar que é devido à sua família. Embora ele talvez tenha certas preferências políticas -como aquela "fidelidade política instintiva" ao setor de investimento-, as decisões do governo existem para servir à aquisição de poder, e não o contrário.
De acordo com pessoas que o observaram no Texas, Karl Rove é devoto de Maquiavel, especialmente de "O Príncipe". E, como aponta Phillips, "os leitores norte-americanos de "O Príncipe", no século 21, acreditam ter descoberto um memorando da Casa Branca, muito mal disfarçado". Porque o livro de Maquiavel tratava de como conquistar e reter o poder, e não do que fazer com ele.
Assim, qual é o estado da União? Que Phillips tenha a última palavra: "O advento de uma dinastia com inclinações maquiavélicas em um momento que pode ser maquiavélico para a república norte-americana não é uma coincidência feliz... O governo nacional se afastou, ao menos temporariamente, da comprovada tradição de um líder escolhido pela maioria ou uma pluralidade do eleitorado e se tornou uma sucessão dinástica, cuja herança infortunada envolve privilégio, manobras de bastidores e conexões não explicadas em todo o mundo".


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