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ARTIGO
América de Bush é o país das dinastias
PAUL KRUGMAN
Eis uma história verdadeira que
chegou tarde demais para ser incluída em "American Dynasty:
Aristocracy, Fortune, and the Politics of Deceit in the House of
Bush" (dinastia americana: aristocracia, fortuna e a política da
enganação na Casa Branca de
Bush), de Kevin Phillips, mas se
enquadra perfeitamente na tese
que ele defende. Como o mundo
inteiro sabe, a Halliburton, empresa que enriqueceu o vice-presidente Dick Cheney, recebeu
contratos multibilionários, sem
concorrência, para a reconstrução do Iraque ocupado.
As suspeitas de favorecimento
são inevitáveis, e os críticos acreditam ter descoberto provas no
caso da importação de gasolina,
porque a Halliburton vem cobrando das autoridades norte-americanas no Iraque preços notavelmente altos pela gasolina,
muito superiores aos preços locais do mercado.
A empresa nega qualquer irregularidade, dizendo que seus preços em Bagdá refletem os preços
que tem de pagar ao seu fornecedor no Kuait. Mas isso não é exatamente verdade; as despesas que
a Halliburton registra pelo transporte de gasolina são, por algum
motivo, muito superiores às de
qualquer outra companhia.
E a verdadeira questão é por que
a Halliburton teria escolhido esse
fornecedor específico -uma empresa com pouca experiência no
setor petroleiro, misteriosamente
selecionada como fonte única de
gasolina depois de uma concorrência que parece ter sido conduzida de maneira bastante imprópria. Por que a empresa obteve esse contrato? Não sabemos.
Mas é interessante apontar que
o grupo parece ter conexões estreitas com a família Al Sabah,
que reina no Kuait. E a família Al
Sabah, por sua vez, no passado
manteve ligações de negócios estreitas com a família Bush, em especial com Marvin, o irmão do
presidente.
Em qualquer gestão anterior
-pelo menos qualquer gestão
dos últimos 70 anos-, essa espécie de relação incestuosa entre governos estrangeiros, empresas
privadas e a fortuna pessoal de
gente que participa ou tem estreito contato com o governo dos
EUA seria considerada incomum
e, à primeira vista, escandalosa. O
que o novo livro de Phillips nos
ensina, porém, é que essa espécie
de mistura de política pública e
interesse pessoal vem sendo o
procedimento padrão de George
W. Bush e de toda a sua família.
"American Dynasty" e o novo
livro de Ron Suskind, "The Price
of Loyalty" (o preço da lealdade)
podem ser encarados como a segunda leva de críticas a Bush. A
primeira, exemplificada por "Big
Lies" [grandes mentiras], de Joe
Conason, e "The Lies of George
W. Bush" [as mentiras de George
W. Bush], de David Corn, descrevem o que Bush vem fazendo nos
três últimos anos. Mas não explicam muito sobre os motivos pelos
quais o governo Bush age assim.
Os novos livros se aprofundam
mais na dolorosa questão relativa
ao que está acontecendo com o
nosso país. Ron Suskind oferece
uma visão detalhada e muitas vezes perturbadora sobre o jeito
Bush de fazer política. Kevin Phillips, ex-estrategista do Partido
Republicano que sente que seu
partido traiu os princípios que ele
defendia, investiga o clã Bush e argumenta que a história da família
é crucial para que compreendamos os motivos de George W. e
até sua técnica de governo.
Phillips oferece um retrato incomum e nada lisonjeiro de uma
grande família (grande em poder,
não em moralidade), que construiu ao longo do século 20 uma
base de poder nos corredores obscuros do novo complexo industrial-militar, em estreita associação com as comunidades de inteligência e de segurança nacional,
que cresceram no período.
E George W. Bush, o líder da dinastia, é o primeiro presidente a
ter, de fato, herdado o posto. Por
quatro gerações, a família Bush
prosperou por meio da exploração de suas conexões políticas, especialmente no mundo secreto da
inteligência, para avançar nos negócios, além de explorar suas conexões no mundo dos negócios,
especialmente nos setores petroleiro e financeiro, para avançar na
política. E o que quer que os especialistas e o público possam ter
pensado sobre a eleição de 2000,
para os Bushes ela foi como uma
restauração ao trono.
A história da família Bush nos
ajuda a compreender uma das
grandes tragédias da história política dos EUA. Depois da disputada eleição de 2000, o país precisava de um presidente que procurasse a reconciliação. Mas obteve
um líder profundamente divisor,
que transformou em piada sua
promessa eleitoral de "unir, em
lugar de dividir". E isso é coisa de
família, como nos diz Phillips.
Quando Bush assumiu, em
2001, emergiu rapidamente um
paralelo com a arrogância das dinastias Stuart e Bourbon, dada a
insistência do novo regime em
um forte conservadorismo ideológico, a despeito de não ter recebido mandato nacional nesse sentido. A restauração se alimenta de
suas próprias fontes, muito especiais em termos psicológicos.
Assim, que tipo de família reconquistou a herança que lhes era
de direito ainda
que só aos olhos
deles? Trata-se de
uma família que se
acostumou aos
privilégios.
"Por volta da
metade do século
20, conexões familiares e capitalismo de compadres
já eram a base da
economia familiar, com ênfase
nas recompensas
do mundo financeiro e na lealdade
política instintiva
ao mundo do investimento. Os
Bushes não geraram presidentes
de universidades
ou pedreiros, cientistas ou empreiteiros do setor de encanamentos em termos gerais, quase
todos os membros da família se
tornaram empresários do ramo
das finanças, e nada mais."
Como sugere essa citação de
Phillips, a dinastia Bush difere das
demais famílias americanas que
combinaram riqueza e proeminência política. Os Kennedys e os
Rockfellers talvez se sintam privilegiados em termos políticos, mas
também exibem um senso de
obrigação cívica -o que se poderia classificar como um instinto
de restituição à sociedade, por
meio de caridade e serviço público, pela sorte de que desfrutam.
Já os Bushes não têm esse problema. O clã nunca teve um reformista ou filantropo. Seus membros disputam cargos públicos,
mas parecem sentir que é o público que existe para servi-los.
Deixemos George W. de lado,
por um instante, e estudemos de
que maneira seus irmãos empregaram as conexões políticas de
que dispunham para enriquecer.
Eis alguns destaques.
Antes de se eleger governador
da Flórida, Jeb Bush, em sociedade com um refugiado cubano que
Phillips acredita ter relações com
a CIA (Agência Central de Inteligência), adquiriu um edifício de
escritórios por US$ 4,6 milhões,
tomados em empréstimo a uma
empresa de poupança imobiliária. Quando a empresa faliu, a administração do empréstimo passou a ser responsabilidade da Resolution Trust Corporation, agência federal que supervisiona as falências desse setor, e por algum
motivo esta permitiu que os sócios liquidassem sua dívida por
apenas US$ 500 mil.
Em outra transação, Jeb recebeu
ótimo pagamento de uma empresa que estava vendendo equipamento para bombeamento à Nigéria, país que recebeu financiamento em larga escala por intermédio do Export-Import Bank
norte-americano.
Neil Bush era
membro do conselho de outra empresa
de poupança imobiliária, a qual emprestou US$ 200 milhões
-jamais pagos- a
uma companhia petroleira que, por sua
vez, fez grandes empréstimos a Neil sem
jamais cobrá-los. No
recente processo de
divórcio desse Bush,
surgiu a informação
de que uma empresa
patrocinada por empresários chineses,
entre os quais o filho
do presidente Jiang
Zemin, teria pago
grandes quantias a
Neil por serviços
muito mal definidos.
Depois da primeira
guerra do golfo Pérsico (1991),
Marvin Bush, que foi ao Kuait à
procura de negócios, em 1993,
passou a integrar os conselhos de
diversas empresas controladas
pela Kuwait-American Company.
Um membro da família real do
Kuait é um dos maiores acionistas
da Kuwait-American, e parece razoável presumir que Marvin seja
funcionário da família Al Sabah.
E temos também a história de
como George W. enriqueceu.
Muita gente desconhece a aventura -as empresas insolventes que
de alguma forma terminam adquiridas por preços suculentos, a
venda de ações motivada por informações privilegiadas que de alguma maneira jamais foi investigada devidamente, a generosidade do governo que fez do time de
beisebol Texas Rangers um negócio tão bom que um consórcio de
empresários decidiu escolher
George W. para servir como rosto
público da equipe. Diversas dessas transações, como as do irmão
Marvin, envolviam ligações com
o Oriente Médio. O primeiro empreendimento de Bush, a Arbusto, talvez tenha envolvido dinheiro da família Bin Laden. A história
da participação acionária de
George W. na Harken Energy,
vendida por ele dois meses antes
de a empresa anunciar imensos
prejuízos, envolve um intrigante
acordo anunciado de surpresa
com o governo do Bahrein.
Phillips resume a situação da seguinte forma: "No geral, se as conexões da família presidencial
fossem parques temáticos, o Bush
World mereceria uma visita. Bancos do Oriente Médio, ligados à
CIA, ocupam boa parte do espaço, acompanhados por empresas
de poupança imobiliária da Flórida que um dia lavaram dinheiro
para os contras nicaragüenses.
Dezenas de poços de petróleo
funcionariam perpetuamente
sem encontrar petróleo, graças a
periódicos depósitos em dinheiro
feitos por velhos usando buttons
da campanha Reagan/Bush e fumando charutos de
US$ 20".
Mas, além de esclarecer um pouco
as dúvidas sobre o
caráter do presidente, por que essa
história familiar
obscura interessa?
Phillips defende
convincentemente
a teoria de que o capitalismo de compadres da família
Bush está estreitamente vinculado à
política do governo
Bush.
Em parte, é uma
questão de valores,
a "fidelidade política instintiva" de
George W. às atividades que enriqueceram sua família.
Ainda que tenha disputado a eleição de 2000 como moderado,
suas políticas, do corte de impostos ao abandono do Protocolo de
Kyoto, têm favorecido incansavelmente os ricos e o setor de
energia. E, segundo o livro de Suskind, George W. parece rejeitar
visceralmente qualquer idéia de
reforma nas grandes empresas.
O mais preocupante talvez seja
a alegação de Phillips de que a história familiar determina a política
externa de Bush. É extremamente
irônico que Bush, tão apreciado
pelos norte-americanos mais patriotas e conservadores por suas
maneiras francas e por seu caráter
nacionalista, venha de uma família notória pelas profundas conexões políticas e empresariais com
o Oriente Médio. Como alguém
certa vez indicou, é mais fácil documentar ligações entre a família
Bin Laden e os Bushes do que documentar ligações entre Osama
bin Laden e Saddam Hussein.
Já mencionei algumas das conexões empresariais. Existem outras, como o emprego de George
Bush, pai, depois de encerrado
seu mandato, no Carlyle Group,
empresa privada de investimento
cujos sócios sauditas incluem
membros da família Bin Laden.
Mas talvez mais importantes sejam as conexões políticas. Uma
maneira de compreender a atitude de permanente confronto adotada por Bush filho quanto ao Iraque é interpretá-la como rejeição
da estratégia norte-americana
tradicional, que envolvia alianças
de conveniência com certos regimes da região. E quem era responsável por essa estratégia? Pouca gente esteve mais envolvida em
sua criação do que Bush pai, como diretor da CIA, vice-presidente e, por fim -até que Saddam
saísse da linha-, como presidente. Phillips descreve as duas guerras do golfo Pérsico, zombeteiramente, como "as guerras de sucessão do Texas".
Ao longo do caminho, ele nos
lembra de uma série de escândalos, confirmados ou
possíveis, quanto à
política norte-americana no Oriente
Médio, todos os
quais de alguma
maneira envolvendo a família Bush.
Phillips sugere que
possa haver alguma
substância nos antigos boatos de que
operadores republicanos ligados à CIA
teriam negociado
com os mulás iranianos o adiamento
da libertação dos reféns norte-americanos, em 1980, o que
pôs fim às chances
de reeleição de
Jimmy Carter. Ele
também posiciona
Bush pai no centro
do Irã-Contras, citando o indiciamento do então secretário da Defesa, Caspar Weinberger, em
1992, processo no qual Weinberger alegou que Bush teria participado da negociação na troca de
reféns por armas.
Para mim, no entanto, a história
mais impressionante é sua versão
do "Iraquegate". Nesse escândalo,
há muito acobertado, funcionários do governo Reagan e do governo de Bush pai não só forneceram armas a Saddam Hussein como fecharam os olhos ao uso feito
por ele de armas químicas e mais
tarde sinalizaram claramente que
não se incomodariam caso ele
ocupasse parte do Kuait -sinal
que Saddam aparentemente interpretou como licença para tomar todo o país. A história lança
uma luz irônica sobre os esforços
de alguns desses funcionários, sobretudo Donald Rumsfeld, para
justificar retroativamente a invasão do Iraque, no ano passado,
como uma ação de defesa dos direitos humanos e da democracia.
Ainda assim, a questão fundamental não é aquilo que motiva a
família Bush e seus leais seguidores. É de que forma um clã tão interesseiro, e com histórico tão
pouco expressivo em termos de
serviço público, pode ter conquistado tamanho poder. E é quanto a
isso que Phillips oferece uma explicação. Se bem que apenas parcial, ela serve como um bom ponto de partida.
A tese de Phillips une três correntes distintas. A primeira é o
efeito do aumento acentuado na
desigualdade econômica, que levou à criação de uma "América
dinástica", em muitas áreas. Para
resumir as coisas de maneira simples, a elite econômica se tornou
ainda mais elitizada do que já era
uma década atrás. Desde o final
dos anos 70, o 1% mais rico da população dos EUA duplicou seu
patrimônio, como proporção do
patrimônio nacional, e o 0,01%
mais rico sextuplicou sua riqueza,
em termos proporcionais. Hoje
existe, em extensão que não víamos desde os anos 20, uma classe
substancial de pessoas ricas o bastante para formar dinastias. E, de
várias formas, que vão de sua contribuição política a uma influência talvez mais sutil na formação
da cultura, por exemplo promovendo valores aristocráticos, essa
classe criou um ambiente favorável às ambições dinásticas.
A segunda envolve a, digamos,
profana aliança entre a classe dinástica e a direita religiosa. Considero a explicação de Phillips sobre a maneira pela qual Bush emprega linguagem religiosamente
carregada para expressar sua
aliança com os fundamentalistas
muito reveladora: "A linguagem
cotidiana de Bush é um verdadeiro centro de mensagens bíblicas.
Além das onipresentes referências ao "mal" e aos "malignos", o
principal redator de discursos para a Casa Branca, Michael Gerson,
que chegou a cursar uma faculdade de Teologia, recheia as falas de
George W. Bush com frases que,
embora inofensivas para os eleitores seculares, dirigem mensagens religiosas mais específicas
aos fiéis".
A análise de Bruce Lincoln, um
estudioso da Bíblia, sobre o discurso de Bush ao país em 7 de outubro de 2001, anunciando o ataque ao Afeganistão, identificou
meia dúzia de referências veladas
ao Livro das Revelações, a Isaías, a
Jacó, a Mateus e a Jeremias. Ele
concluiu que, para pessoas atentas a um subtexto bíblico, "ao final do discurso os adversários dos
EUA haviam sido redefinidos como inimigos de Deus, e os acontecimentos atuais retratados como
uma confirmação das Escrituras".
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