São Paulo, domingo, 15 de fevereiro de 2004

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ARTIGO

América de Bush é o país das dinastias

PAUL KRUGMAN

Eis uma história verdadeira que chegou tarde demais para ser incluída em "American Dynasty: Aristocracy, Fortune, and the Politics of Deceit in the House of Bush" (dinastia americana: aristocracia, fortuna e a política da enganação na Casa Branca de Bush), de Kevin Phillips, mas se enquadra perfeitamente na tese que ele defende. Como o mundo inteiro sabe, a Halliburton, empresa que enriqueceu o vice-presidente Dick Cheney, recebeu contratos multibilionários, sem concorrência, para a reconstrução do Iraque ocupado.
As suspeitas de favorecimento são inevitáveis, e os críticos acreditam ter descoberto provas no caso da importação de gasolina, porque a Halliburton vem cobrando das autoridades norte-americanas no Iraque preços notavelmente altos pela gasolina, muito superiores aos preços locais do mercado.
A empresa nega qualquer irregularidade, dizendo que seus preços em Bagdá refletem os preços que tem de pagar ao seu fornecedor no Kuait. Mas isso não é exatamente verdade; as despesas que a Halliburton registra pelo transporte de gasolina são, por algum motivo, muito superiores às de qualquer outra companhia.
E a verdadeira questão é por que a Halliburton teria escolhido esse fornecedor específico -uma empresa com pouca experiência no setor petroleiro, misteriosamente selecionada como fonte única de gasolina depois de uma concorrência que parece ter sido conduzida de maneira bastante imprópria. Por que a empresa obteve esse contrato? Não sabemos.
Mas é interessante apontar que o grupo parece ter conexões estreitas com a família Al Sabah, que reina no Kuait. E a família Al Sabah, por sua vez, no passado manteve ligações de negócios estreitas com a família Bush, em especial com Marvin, o irmão do presidente.
Em qualquer gestão anterior -pelo menos qualquer gestão dos últimos 70 anos-, essa espécie de relação incestuosa entre governos estrangeiros, empresas privadas e a fortuna pessoal de gente que participa ou tem estreito contato com o governo dos EUA seria considerada incomum e, à primeira vista, escandalosa. O que o novo livro de Phillips nos ensina, porém, é que essa espécie de mistura de política pública e interesse pessoal vem sendo o procedimento padrão de George W. Bush e de toda a sua família.
"American Dynasty" e o novo livro de Ron Suskind, "The Price of Loyalty" (o preço da lealdade) podem ser encarados como a segunda leva de críticas a Bush. A primeira, exemplificada por "Big Lies" [grandes mentiras], de Joe Conason, e "The Lies of George W. Bush" [as mentiras de George W. Bush], de David Corn, descrevem o que Bush vem fazendo nos três últimos anos. Mas não explicam muito sobre os motivos pelos quais o governo Bush age assim.
Os novos livros se aprofundam mais na dolorosa questão relativa ao que está acontecendo com o nosso país. Ron Suskind oferece uma visão detalhada e muitas vezes perturbadora sobre o jeito Bush de fazer política. Kevin Phillips, ex-estrategista do Partido Republicano que sente que seu partido traiu os princípios que ele defendia, investiga o clã Bush e argumenta que a história da família é crucial para que compreendamos os motivos de George W. e até sua técnica de governo.
Phillips oferece um retrato incomum e nada lisonjeiro de uma grande família (grande em poder, não em moralidade), que construiu ao longo do século 20 uma base de poder nos corredores obscuros do novo complexo industrial-militar, em estreita associação com as comunidades de inteligência e de segurança nacional, que cresceram no período.
E George W. Bush, o líder da dinastia, é o primeiro presidente a ter, de fato, herdado o posto. Por quatro gerações, a família Bush prosperou por meio da exploração de suas conexões políticas, especialmente no mundo secreto da inteligência, para avançar nos negócios, além de explorar suas conexões no mundo dos negócios, especialmente nos setores petroleiro e financeiro, para avançar na política. E o que quer que os especialistas e o público possam ter pensado sobre a eleição de 2000, para os Bushes ela foi como uma restauração ao trono.
A história da família Bush nos ajuda a compreender uma das grandes tragédias da história política dos EUA. Depois da disputada eleição de 2000, o país precisava de um presidente que procurasse a reconciliação. Mas obteve um líder profundamente divisor, que transformou em piada sua promessa eleitoral de "unir, em lugar de dividir". E isso é coisa de família, como nos diz Phillips.
Quando Bush assumiu, em 2001, emergiu rapidamente um paralelo com a arrogância das dinastias Stuart e Bourbon, dada a insistência do novo regime em um forte conservadorismo ideológico, a despeito de não ter recebido mandato nacional nesse sentido. A restauração se alimenta de suas próprias fontes, muito especiais em termos psicológicos.
Assim, que tipo de família reconquistou a herança que lhes era de direito ainda que só aos olhos deles? Trata-se de uma família que se acostumou aos privilégios.
"Por volta da metade do século 20, conexões familiares e capitalismo de compadres já eram a base da economia familiar, com ênfase nas recompensas do mundo financeiro e na lealdade política instintiva ao mundo do investimento. Os Bushes não geraram presidentes de universidades ou pedreiros, cientistas ou empreiteiros do setor de encanamentos em termos gerais, quase todos os membros da família se tornaram empresários do ramo das finanças, e nada mais."
Como sugere essa citação de Phillips, a dinastia Bush difere das demais famílias americanas que combinaram riqueza e proeminência política. Os Kennedys e os Rockfellers talvez se sintam privilegiados em termos políticos, mas também exibem um senso de obrigação cívica -o que se poderia classificar como um instinto de restituição à sociedade, por meio de caridade e serviço público, pela sorte de que desfrutam.
Já os Bushes não têm esse problema. O clã nunca teve um reformista ou filantropo. Seus membros disputam cargos públicos, mas parecem sentir que é o público que existe para servi-los.
Deixemos George W. de lado, por um instante, e estudemos de que maneira seus irmãos empregaram as conexões políticas de que dispunham para enriquecer. Eis alguns destaques.
Antes de se eleger governador da Flórida, Jeb Bush, em sociedade com um refugiado cubano que Phillips acredita ter relações com a CIA (Agência Central de Inteligência), adquiriu um edifício de escritórios por US$ 4,6 milhões, tomados em empréstimo a uma empresa de poupança imobiliária. Quando a empresa faliu, a administração do empréstimo passou a ser responsabilidade da Resolution Trust Corporation, agência federal que supervisiona as falências desse setor, e por algum motivo esta permitiu que os sócios liquidassem sua dívida por apenas US$ 500 mil.
Em outra transação, Jeb recebeu ótimo pagamento de uma empresa que estava vendendo equipamento para bombeamento à Nigéria, país que recebeu financiamento em larga escala por intermédio do Export-Import Bank norte-americano.
Neil Bush era membro do conselho de outra empresa de poupança imobiliária, a qual emprestou US$ 200 milhões -jamais pagos- a uma companhia petroleira que, por sua vez, fez grandes empréstimos a Neil sem jamais cobrá-los. No recente processo de divórcio desse Bush, surgiu a informação de que uma empresa patrocinada por empresários chineses, entre os quais o filho do presidente Jiang Zemin, teria pago grandes quantias a Neil por serviços muito mal definidos.
Depois da primeira guerra do golfo Pérsico (1991), Marvin Bush, que foi ao Kuait à procura de negócios, em 1993, passou a integrar os conselhos de diversas empresas controladas pela Kuwait-American Company. Um membro da família real do Kuait é um dos maiores acionistas da Kuwait-American, e parece razoável presumir que Marvin seja funcionário da família Al Sabah.
E temos também a história de como George W. enriqueceu. Muita gente desconhece a aventura -as empresas insolventes que de alguma forma terminam adquiridas por preços suculentos, a venda de ações motivada por informações privilegiadas que de alguma maneira jamais foi investigada devidamente, a generosidade do governo que fez do time de beisebol Texas Rangers um negócio tão bom que um consórcio de empresários decidiu escolher George W. para servir como rosto público da equipe. Diversas dessas transações, como as do irmão Marvin, envolviam ligações com o Oriente Médio. O primeiro empreendimento de Bush, a Arbusto, talvez tenha envolvido dinheiro da família Bin Laden. A história da participação acionária de George W. na Harken Energy, vendida por ele dois meses antes de a empresa anunciar imensos prejuízos, envolve um intrigante acordo anunciado de surpresa com o governo do Bahrein.
Phillips resume a situação da seguinte forma: "No geral, se as conexões da família presidencial fossem parques temáticos, o Bush World mereceria uma visita. Bancos do Oriente Médio, ligados à CIA, ocupam boa parte do espaço, acompanhados por empresas de poupança imobiliária da Flórida que um dia lavaram dinheiro para os contras nicaragüenses. Dezenas de poços de petróleo funcionariam perpetuamente sem encontrar petróleo, graças a periódicos depósitos em dinheiro feitos por velhos usando buttons da campanha Reagan/Bush e fumando charutos de US$ 20".
Mas, além de esclarecer um pouco as dúvidas sobre o caráter do presidente, por que essa história familiar obscura interessa? Phillips defende convincentemente a teoria de que o capitalismo de compadres da família Bush está estreitamente vinculado à política do governo Bush.
Em parte, é uma questão de valores, a "fidelidade política instintiva" de George W. às atividades que enriqueceram sua família. Ainda que tenha disputado a eleição de 2000 como moderado, suas políticas, do corte de impostos ao abandono do Protocolo de Kyoto, têm favorecido incansavelmente os ricos e o setor de energia. E, segundo o livro de Suskind, George W. parece rejeitar visceralmente qualquer idéia de reforma nas grandes empresas.
O mais preocupante talvez seja a alegação de Phillips de que a história familiar determina a política externa de Bush. É extremamente irônico que Bush, tão apreciado pelos norte-americanos mais patriotas e conservadores por suas maneiras francas e por seu caráter nacionalista, venha de uma família notória pelas profundas conexões políticas e empresariais com o Oriente Médio. Como alguém certa vez indicou, é mais fácil documentar ligações entre a família Bin Laden e os Bushes do que documentar ligações entre Osama bin Laden e Saddam Hussein.
Já mencionei algumas das conexões empresariais. Existem outras, como o emprego de George Bush, pai, depois de encerrado seu mandato, no Carlyle Group, empresa privada de investimento cujos sócios sauditas incluem membros da família Bin Laden.
Mas talvez mais importantes sejam as conexões políticas. Uma maneira de compreender a atitude de permanente confronto adotada por Bush filho quanto ao Iraque é interpretá-la como rejeição da estratégia norte-americana tradicional, que envolvia alianças de conveniência com certos regimes da região. E quem era responsável por essa estratégia? Pouca gente esteve mais envolvida em sua criação do que Bush pai, como diretor da CIA, vice-presidente e, por fim -até que Saddam saísse da linha-, como presidente. Phillips descreve as duas guerras do golfo Pérsico, zombeteiramente, como "as guerras de sucessão do Texas".
Ao longo do caminho, ele nos lembra de uma série de escândalos, confirmados ou possíveis, quanto à política norte-americana no Oriente Médio, todos os quais de alguma maneira envolvendo a família Bush. Phillips sugere que possa haver alguma substância nos antigos boatos de que operadores republicanos ligados à CIA teriam negociado com os mulás iranianos o adiamento da libertação dos reféns norte-americanos, em 1980, o que pôs fim às chances de reeleição de Jimmy Carter. Ele também posiciona Bush pai no centro do Irã-Contras, citando o indiciamento do então secretário da Defesa, Caspar Weinberger, em 1992, processo no qual Weinberger alegou que Bush teria participado da negociação na troca de reféns por armas.
Para mim, no entanto, a história mais impressionante é sua versão do "Iraquegate". Nesse escândalo, há muito acobertado, funcionários do governo Reagan e do governo de Bush pai não só forneceram armas a Saddam Hussein como fecharam os olhos ao uso feito por ele de armas químicas e mais tarde sinalizaram claramente que não se incomodariam caso ele ocupasse parte do Kuait -sinal que Saddam aparentemente interpretou como licença para tomar todo o país. A história lança uma luz irônica sobre os esforços de alguns desses funcionários, sobretudo Donald Rumsfeld, para justificar retroativamente a invasão do Iraque, no ano passado, como uma ação de defesa dos direitos humanos e da democracia.
Ainda assim, a questão fundamental não é aquilo que motiva a família Bush e seus leais seguidores. É de que forma um clã tão interesseiro, e com histórico tão pouco expressivo em termos de serviço público, pode ter conquistado tamanho poder. E é quanto a isso que Phillips oferece uma explicação. Se bem que apenas parcial, ela serve como um bom ponto de partida.
A tese de Phillips une três correntes distintas. A primeira é o efeito do aumento acentuado na desigualdade econômica, que levou à criação de uma "América dinástica", em muitas áreas. Para resumir as coisas de maneira simples, a elite econômica se tornou ainda mais elitizada do que já era uma década atrás. Desde o final dos anos 70, o 1% mais rico da população dos EUA duplicou seu patrimônio, como proporção do patrimônio nacional, e o 0,01% mais rico sextuplicou sua riqueza, em termos proporcionais. Hoje existe, em extensão que não víamos desde os anos 20, uma classe substancial de pessoas ricas o bastante para formar dinastias. E, de várias formas, que vão de sua contribuição política a uma influência talvez mais sutil na formação da cultura, por exemplo promovendo valores aristocráticos, essa classe criou um ambiente favorável às ambições dinásticas.
A segunda envolve a, digamos, profana aliança entre a classe dinástica e a direita religiosa. Considero a explicação de Phillips sobre a maneira pela qual Bush emprega linguagem religiosamente carregada para expressar sua aliança com os fundamentalistas muito reveladora: "A linguagem cotidiana de Bush é um verdadeiro centro de mensagens bíblicas. Além das onipresentes referências ao "mal" e aos "malignos", o principal redator de discursos para a Casa Branca, Michael Gerson, que chegou a cursar uma faculdade de Teologia, recheia as falas de George W. Bush com frases que, embora inofensivas para os eleitores seculares, dirigem mensagens religiosas mais específicas aos fiéis".
A análise de Bruce Lincoln, um estudioso da Bíblia, sobre o discurso de Bush ao país em 7 de outubro de 2001, anunciando o ataque ao Afeganistão, identificou meia dúzia de referências veladas ao Livro das Revelações, a Isaías, a Jacó, a Mateus e a Jeremias. Ele concluiu que, para pessoas atentas a um subtexto bíblico, "ao final do discurso os adversários dos EUA haviam sido redefinidos como inimigos de Deus, e os acontecimentos atuais retratados como uma confirmação das Escrituras".


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