São Paulo, domingo, 15 de fevereiro de 2004

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ORIENTE MÉDIO


Impasse envolvendo eleição revela disputa na ala conservadora entre grupos de pragmáticos e dogmáticos

Crise no Irã expõe cisão entre conservadores

DA REDAÇÃO

A atual crise política no Irã explicita o esforço dos conservadores para retomar o controle do Majlis (Parlamento), dominado pelos liberais desde 2000, porém não marca o início de um movimento maior -que poderia pôr em xeque o futuro do regime islâmico-, de acordo com especialistas consultados pela Folha.
Para Shireen Hunter, autora de "Iran and the World: Continuity in a Revolutionary Decade" (Irã e o mundo: continuidade numa década revolucionária), a situação revela uma divisão antiga, mas pouco perceptível, existente no campo conservador. "Há a linha dura, composta pelo grupo comandado por Ali Khamenei [o líder supremo do país], e a ala conservadora mais liberal, cuja figura de ponta é o ex-presidente Hashemi Rafsanjani [1989-97]."
Já Olivier Roy, do Instituto de Estudos Políticos de Paris, divide os conservadores em dois grupos: os dogmáticos e os pragmáticos. "Os conservadores pragmáticos precisam de uma maioria confortável no Parlamento", disse, referindo-se ao projeto dessa ala de reformar o regime iraniano lentamente, com a anuência do Majlis.
Assim, a crise atual expôs um racha no campo conservador. Foi por isso que o Conselho de Guardiães, órgão que zela pelo respeito à Constituição no Irã, decidiu bloquear a candidatura de mais de 2.500 reformistas a postos no Parlamento, segundo Hunter.
"Embora tenham sido apontados por Khamenei, os 12 membros do conselho [seis clérigos e seis juristas] nem sempre chegam a um consenso. É provável que a maioria deles tenha imaginado que fosse preciso reconquistar a maioria no Parlamento a qualquer custo para introduzir a reforma gradualmente", avaliou a diretora do programa sobre o islã do Centro para Estudos Estratégicos e Internacionais (EUA).
De fato, antes do pleito legislativo de 2000, quando os reformistas ainda eram minoritários no Majlis, o Conselho de Guardiães vetou apenas 8% dos pedidos de candidatura. Desta vez, o órgão aprovou 5.627 candidatos de um total de 8.144, de acordo com a agência de notícias oficial. Ou seja, quase 31% dos pedidos de candidatura foram negados.
Ironicamente, o impasse pôs os protagonistas da cena politica iraniana, Khamenei e o presidente Mohammad Khatami, em dificuldade. Khamenei viu uma ordem expressa sua ser desrespeitada pelo Conselho de Guardiães. Afinal, ele dissera ao órgão que o veto "à maioria dos pedidos de candidatura" deveria ser reavaliado.
O clérigo Khatami alertou a linha dura para o perigo de afastar os jovens da Revolução Islâmica, que completou 25 anos na última quarta-feira, ao impedir a realização da reforma política. Mesmo assim, o presidente, que é um reformista moderado, afirmou que seu partido participará da eleição.
Com isso, desagradou profundamente a boa parte de seus colegas liberais. Afinal, a maioria deles pretende boicotar a eleição por considerar, como já afirmou Mohammad Reza Khatami (irmão do presidente e líder do maior bloco reformista do país, a Frente de Participação do Irã Islâmico), que ela "não será livre nem justa".
"Khatami não está com os liberais radicais. Assim, é claro que eles estão se distanciando do presidente. Porém eles não conseguem mais atrair o apoio da população, sobretudo dos jovens, que seria decisivo para realmente pesar na cena política iraniana. Por outro lado, ao menos aos olhos dos jovens reformistas, a legitimidade de Khatami foi muito minada", avaliou Fariba Adelkhah, do Centro de Estudos e de Pesquisas Internacionais (Paris).
Como o Irã vive uma crise institucional desde a conquista do Parlamento pelo campo reformista, Khatami deveria ter aderido ao boicote se quisesse reaver sua popularidade de 2001, quando obteve uma reeleição incontestável.
"Se houvesse uma crise constitucional, com Khatami e os governadores das Províncias se recusando a organizar a eleição, a população poderia sublevar-se. Mas não creio que os principais líderes reformistas queiram esse desfecho, que poria em risco a unidade da nação", analisou Hunter.
De fato, embora pretendam boicotar o pleito, mesmo os liberais mais radicais evitam exortar a população a deixar de votar, pois isso poderia ser considerado um crime eleitoral. "Reza Khatami é um líder reformista radical, porém não pretende dar início a uma revolução. No futuro próximo, ele continuará sendo apenas um oposicionista radical, nada mais, já que não toma atitudes decisivas", explicou Saeid Zahed, da Universidade de Shiraz (Irã).

Jovens e estudantes
O ponto de inflexão da crise poderia ser a adesão dos estudantes ao protesto dos liberais. Contudo essa perspectiva é pouco provável atualmente, visto que os jovens se decepcionaram com o campo reformista. "A ausência de progresso no que concerne às reformas afastou os jovens dos liberais. Afinal, eles não mais acreditam que os líderes atuais possam conduzir a transformação política de que o país precisa", disse Hunter.
Para Roy, as ações futuras dos jovens reformistas dependerão do modo como os conservadores pragmáticos conduzirão a política iraniana após sua provável reconquista da maioria do Majlis.
"Tudo dependerá do modo como os conservadores agirão após a eleição. Uma vez reconquistada a maioria no Parlamento, eles poderão lançar uma ofensiva para retomar as rédeas da sociedade ou, em vez disso, inserir na pauta do Legislativo um programa de reformas condizente com seus princípios e respeitador de sua posição política", apontou Roy.
Assim, se a primeira possibilidade for privilegiada pelos conservadores, a situação poderá agravar-se substancialmente. Não se sabe se os jovens querem simplesmente pôr fim ao regime islâmico, mas é certo que eles anseiam uma abertura política. Cerca de 60% da população iraniana tem menos de 30 anos de idade.
Anteontem, Khamenei exortou a população a dar um "tapa no rosto" dos inimigos do Irã, comparecendo em massa às urnas. Analistas prevêem, porém, que o nível de abstenção deva ser alto -só 15% dos eleitores votaram no último pleito municipal, em 2003. Mais do que nunca, caberá ao eleitorado escolher seu campo.
(MÁRCIO SENNE DE MORAES)



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