São Paulo, domingo, 15 de março de 2009

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"Ordem contra Bashir agrava crise no Sudão"

Para Alex de Waal, negociação com pressão se mostrava mais eficaz; ele prevê aumento do saldo de mortos após expulsão de ONGs

Estudioso do conflito em Darfur diz que ONU não tem como ser mediador neutro, enquanto a União Africana, criticada, é fraca demais

PEDRO DIAS LEITE
DE LONDRES

Desde 2003, o governo do Sudão patrocina uma campanha de terra arrasada para acabar com grupos rebeldes na região de Darfur, uma área quase desértica do tamanho do Estado do Piauí (250 mil km2) no oeste do país onde sobrevivem cerca de 6 milhões de pessoas.
A ofensiva do Exército do Sudão, com apoio de milícias árabes, já deixou cerca de 300 mil mortos e 3 milhões sem casa.
Quando, há 11 dias, o Tribunal Penal Internacional ordenou a prisão do ditador Omar al Bashir pelos crimes na região, alguns analistas viram uma chance de paz. Mas, para um dos maiores especialistas no tema, foi o fim de uma estabilidade frágil e um mergulho na incerteza que pode fazer mais milhares de vítimas.
"A ideia de que o mandado de prisão [contra Bashir] seria um incentivo para a paz é nonsense completo", diz o britânico Alex de Waal, que estuda a região há mais de duas décadas.
A violência, que vinha em níveis relativamente baixos nos últimos anos, deve piorar, diz.
A situação dos mais de 4 milhões de pessoas que dependiam de organizações humanitárias é incerta depois que 13 entidades foram expulsas em retaliação à ordem de prisão.
De Waal sabe do que está falando. Sua tese de doutorado em Oxford, no fim dos anos 80, foi sobre uma fome que deixou centenas de milhares de mortos na região em 1984-5.
O estudioso afirma ainda que a expulsão das agências vai aumentar o controle do governo sobre as milícias, conhecidas como janjaweed ("cavaleiros malvados"). Os espólios da expulsão, diz, devem ser usados para recomprar sua lealdade.
Leia os principais trechos da entrevista concedida à Folha, por telefone, de Nova York.

 

FOLHA - Qual o impacto do pedido de prisão de Bashir para Darfur?
ALEX DE WAAL
- Há um véu de incerteza no momento. A regra básica da negociação no Sudão é: você sempre dá ao seu adversário uma chance de recuar, e assim você sempre tem a chance de obter um acordo. Com o mandado de prisão, essa oportunidade fica perdida. E muda a intensidade do incentivo ao governo para chegar à paz ou fazer um acordo com os rebeldes. Se você os põe contra a parede, eles vão lutar. A ideia de que o mandado de prisão incentivaria a paz é nonsense completo.

FOLHA - Haverá mais violência?
DE WAAL
- As estatísticas que temos, confiáveis, são de que cerca de 1.800 pessoas foram mortas em Darfur em 2008. Cerca de 40% delas eram civis. A probabilidade é que esse nível de violência cresça. [Na sua conta, 90% das mortes do conflito ocorreram em 2003-04].

FOLHA - Internamente, o mandado enfraquece ou fortalece Bashir?
DE WAAL
- No curto prazo, ele vai consolidar seu poder [o ditador comanda o país desde 1989]. A possibilidade de golpe é muito pequena. Não há muito descontentamento entre os militares e, sobretudo, não há sucessor à espera. Havia a previsão de uma eleição, mas a ideia de que elas sejam justas e livres é extremamente improvável. Internacionalmente, ele está isolado do Ocidente, mas ainda tem uma solidariedade razoável dos países africanos.

FOLHA - O governo do Sudão tinha controle dos janjaweed no início do conflito, mas nos últimos tempos a análise de especialistas é que esses grupos não são mais dominados.
DE WAAL
- Normalmente, a lealdade das milícias em Darfur se baseia num contrato de 18 meses. Durante 2006 e 2007, foi muito difícil para o governo do Sudão manter a lealdade dos janjaweed, mas melhorou um pouco no ano passado e vai ser muito fortalecido neste ano, pois muitos dos janjaweed sentem que o mandado de prisão também os visa. Além disso, o confisco dos bens das agências humanitárias permitiu ao governo do Sudão pagar boa parte dessas milícias [muitos assistentes, na expulsão, deixaram computadores, equipamentos, alimentos e dinheiro para trás].

FOLHA - O senhor fala que o mandado de prisão é ruim para os esforços humanitários. Mas não deve haver um balanço da busca pela paz e da busca pela justiça?
DE WAAL
- Há tensão, e é importante admitir que a justiça pode tomar muitas formas. Não é uma questão apenas de justiça num tribunal, há outros meios, como as Comissões de Verdade e Reconciliação na África do Sul [depois do fim do apartheid, essas comissões buscaram descobrir a verdade, mas sem punição para quem confessasse seus crimes]. É fato que milhões de vítimas querem justiça. Mas quando falam disso, não é colocar Bashir num tribunal. Eles falam -e muitos deles falaram diretamente para mim- de voltar para suas casas, de compensação, de retomar a vida que perderam. Não vejo como o que aconteceu nas últimas semanas tomou qualquer passo nessa direção.

FOLHA - Qual o caminho para resolver essa situação?
DE WAAL
- No momento é muito complicado ver uma saída. Um dos problemas-chave é que os principais interlocutores, como o Conselho de Segurança da ONU, se tornaram parte desse conflito [em 2005, foi o CS que encaminhou o caso de Darfur para o TPI]. Então fica impossível para eles desempenhar o papel de mediadores.

FOLHA - Quem deveria mediar? A União Africana também pode ser encarada como parte do conflito, mas do lado do Sudão.
DE WAAL
- Não diria isso. A União Africana tem sido muito crítica do governo sudanês. O problema é que ela não é forte o bastante e está sujeita a críticas da mídia ocidental. Infelizmente, não consigo ver uma saída.

FOLHA - Há alguma chance de Bashir ser preso?
DE WAAL
- É muito improvável.


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