São Paulo, quarta-feira, 15 de maio de 2002

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EUROPA

A mobilização em torno do líder xenófobo Pim Fortuyn sugere que o país, orgulhoso de sua tolerância, sairá diferente das urnas

Holanda "perde inocência" na eleição de hoje

CLÓVIS ROSSI
ENVIADO ESPECIAL A MADRI

A Holanda faz hoje a eleição que marca a perda da inocência de seu processo democrático.
"Perda da inocência" foi a expressão escolhida, separada mas coincidentemente, pelo novo líder social-democrata Ad Melkert e pelo jornal "De Volkskrant", para se referir ao assassinato, no dia 6, de Pim Fortuyn, o líder de ultradireita que, morto ou vivo, será a sensação da habitualmente morna e entediante política holandesa.
A maioria dos cálculos indicava que a LPF (Lista Pim Fortuyn) elegeria cerca de 25 deputados em um total de 150. Parece pouco, mas, dada a tradição holandesa de pulverização dos votos entre três ou quatro partidos, poderia até abrir espaço para que ele se tornasse primeiro-ministro.
Mas a mais recente pesquisa, divulgada anteontem, a primeira após a morte de Fortuyn, catapultou a LPF ao segundo lugar, com a perspectiva de eleger 28 parlamentares, atrás apenas da CDA (Democracia Cristã), que elegeria 31 e faria inexoravelmente o primeiro-ministro.

Choque
A perspectiva de Fortuyn chegar tão perto do comando político do país já seria um choque -e não pelo fato de que ele se tornaria o primeiro homossexual assumido a chegar a tal posto. Esse tipo de novidade estaria bem de acordo com a lendária tolerância holandesa.
O ponto é outro: a "perda da inocência" se deu, na verdade, em março, dois meses antes do assassinato de Fortuyn, quando ele fez a maioria relativa na eleição municipal de Roterdã, a segunda cidade holandesa e o primeiro porto do mundo.
A ascensão de um xenófobo capaz de dizer que a Holanda já estava "lotada" e, portanto, deveria fechar as portas aos imigrantes, e capaz igualmente de chamar o islã de retrógrado, violava a inocência de um país que se orgulha não só da tolerância, mas da busca obsessiva pelo consenso e pela inclusão.
A Holanda nasceu, aliás, do consenso, ao menos como república, em 1648, ao fim da guerra contra a Espanha. Embora a província chamada Holanda fosse fortemente dominante, as grandes decisões exigiam a aprovação de todas as sete províncias que formariam os Países Baixos (que depois se transformariam em monarquia).
Em vez do consenso, Fortuyn pregava o conflito. Sua ascensão chocou a Europa antes mesmo do grande trauma que viria ser a passagem de Jean-Marie Le Pen para o segundo turno da eleição presidencial francesa.
Ainda mais que a Holanda era o mais improvável dos países para um voto iconoclasta.

Crescimento
Para começar, foi o primeiro país a reformar, nos anos 80, o generoso modelo de bem-estar social de forma a estimular a economia sem jogar fora a proteção social.
O resultado, até o ano passado, foi espetacular, conforme relata um dossiê da revista britânica "The Economist":
"Nas duas décadas desde 1982, o PIB (Produto Interno Bruto) holandês cresceu à média anual de 3%, mais rápido do que o da União Européia como um todo e quase tão rápido quanto o dos Estados Unidos. A Holanda passou do 10º lugar entre os 15 países da UE em 1991 para o quinto hoje. O desemprego caiu agudamente, de um pico de 11% em 1983 para menos de 2% neste ano, o menor nos países da OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico, os 29 supostamente mais industrializados do mundo), embora haja polêmica sobre os verdadeiros números".
É verdade que, em 2001, houve uma brusca desaceleração (a economia cresceu apenas 1,4%), mas, ainda assim, não parece o cenário capaz de alentar o voto em partidos como o de Fortuyn, à margem do establishment.
No entanto foi exatamente na Holanda que um conjunto de agrupações locais xenófobas, que agora concorrem com o nome de Holanda Habitável, obteve, nas eleições municipais de março, o mais elevado índice de voto jamais registrado pela extrema direita européia (27% no conjunto do país).
Fortuyn, que se lançou por uma dessas organizações (Roterdã Habitável), rompeu com elas para criar sua própria lista, mas é a soma dos votos na LPF (Lista Pim Fortuyn) e na Holanda Habitável que determinará o maior ou menor sucesso da extrema direita.
A grande incógnita é saber se a morte de Fortuyn tirará votos de sua lista ou, ao contrário, promoverá um enxurrada capaz de alterar, aí sim definitivamente, a inocência da política holandesa.
Kirsty Hughes, pesquisador sênior do Centro para Estudo de Políticas Européias de Bruxelas, supõe que haverá, pelo menos na eleição de hoje, "algum voto simpatia" em favor da LPF, mas que, "com o tempo, um novo partido construído muito à imagem do líder terá problemas para manter o nível de apoio".
A pesquisa de segunda-feira mostra que o "voto simpatia" será bem mais elevado do que imaginava o especialista. "Curiosos os tempos em que um morto ganha as eleições", chega a ironizar o escritor holandês Cees Nooteboom, em artigo para o jornal espanhol "El País" sobre a morte de Fortuyn.



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