São Paulo, domingo, 15 de agosto de 2004

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CINEMA E FÉ

Ativistas islâmicos criticam produção sobre o tema no momento em que há confrontos entre muçulmanos e ocidentais

Filme sobre Cruzadas irrita muçulmanos

SHARON WAXMAN
DO ""NEW YORK TIMES", EM LOS ANGELES

Com a televisão mostrando diariamente imagens sangrentas de muçulmanos e ocidentais travando combates no Iraque e em outras partes do mundo, pode parecer um momento impróprio para lançar um épico hollywoodiano, feito com grande orçamento, que retrata as Cruzadas do século 12, a guerra feroz travada entre cristãos e muçulmanos pelo domínio de Jerusalém.
Mas a 20th Century Fox prepara-se para lançar em 2005 o filme ""Kingdom of Heaven" (reino dos céus), uma produção de US$ 130 milhões do diretor indicado ao Oscar Ridley Scott, rodada em Marrocos com centenas de figurantes, cavalos e figurinos primorosos.
O roteiro, assinado por William Monahan, é baseado em personagens reais das Cruzadas, entre eles Balian de Ibelin, um cavaleiro cruzado que liderou a defesa de Jerusalém no ano de 1187, e o líder muçulmano Saladino, que o derrotou.
Enquanto o estúdio procura enfatizar o que o filme possui de romântico e de ação emocionante, alguns estudiosos e ativistas religiosos aos quais o ""New York Times" forneceu uma cópia do roteiro questionaram o bom senso de se fazer um filme de Hollywood sobre um conflito religioso medieval num momento em que muitas pessoas acreditam que esses conflitos tenham sido retomados num contexto moderno.
""Minha maior preocupação diz respeito ao próprio conceito de um filme sobre as Cruzadas e o que isso significa no discurso americano atual", disse Laila al Qatami, porta-voz do Comitê Antidiscriminação Árabe-Americano, em Washington. ""Sinto que há muita retórica, que há figuras de destaque que falam sobre o islã ser incompatível com a cristandade e os valores americanos. Esse tipo de filme pode reforçar essa temática", afirmou.
Mas nem todos se mostraram preocupados com o efeito do filme. George Dennis, que é padre jesuíta, professor de história na Universidade Loyola Marymount, em Los Angeles, e um dos cinco especialistas que receberam o roteiro, contou ter ficado impressionado com a precisão do filme e sua atenção a detalhes.
""Historicamente falando, achei o roteiro bastante preciso", disse. ""Não posso ver qualquer objeção possível por parte do lado cristão. E acho que os muçulmanos tampouco devem fazer objeções. Acho que não há nada no filme que seja ofensivo para alguém."
Mas o professor Khaled Abu el Fadl, da Universidade da Califórnia em Los Angeles e estudioso do direito islâmico, discorda totalmente, dizendo que o roteiro é ofensivo e repete os estereótipos hollywoodianos tradicionais de árabes e muçulmanos.
""Acho que esse filme ensina as pessoas a odiar os muçulmanos", disse. ""Existe um estereótipo do muçulmano como sendo alguém constantemente estúpido, atrasado, retardado, incapaz de pensar em termos complexos. É realmente irritante em nível intelectual e, além disso, é uma visão que pinta um retrato equivocado da história, em vários níveis."
Fadl argumentou que o filme vai reforçar as atitudes negativas em relação aos muçulmanos na América. ""Neste clima, como as pessoas vão reagir àquelas imagens de muçulmanos atacando igrejas, arrancando a cruz e zombando dela?", perguntou.
Mesmo deixando-se de lado os aspectos específicos do filme, o tema é delicado. A própria palavra ""cruzada" ainda é carregada. Quando, pouco após os ataques do 11 de Setembro, o presidente George W. Bush descreveu a guerra contra o terror como ""cruzada", foi criticado por usar um termo que há anos tem conotação antimuçulmana.
Enquanto isso, alguns especialistas em temas islâmicos que analisaram as motivações de Osama bin Laden após o 11 de Setembro sugeriram que ele estivesse tentando se fazer ver como um Saladino moderno. E o nome de Saladino foi evocado pelo governo de Saddam Hussein para arregimentar os muçulmanos contra a invasão do Iraque liderada pelos EUA.

"Ética dos escoteiros"
Ridley Scott disse que não está preocupado com a possibilidade de ofender as sensibilidades de grupos religiosos. Em entrevista concedida na semana passada, explicou por que: ""O filme soa como a ética dos escoteiros. Fala em usar o coração e a cabeça e agir de maneira ética. Como se pode discordar disso? O filme não pisoteia o Alcorão, nada disso".
Para um filme que trata de uma guerra santa, ""Kingdom of Heaven" surpreende por ter pouco discurso e conteúdo religiosos.
As únicas figuras abertamente religiosas são extremistas: os saqueadores cavaleiros templários, do lado cristão, e os mortíferos cavaleiros sarracenos, do lado muçulmano.
O herói do filme, Balian, representado pelo ator britânico Orlando Bloom, é um ferreiro francês que é convocado a contragosto para as Cruzadas após o suicídio de sua mulher. Chegando a Jerusalém, retratada como uma cidade onde as três religiões monoteístas do mundo conviviam, ele se apaixona pela irmã do rei.
Após um massacre de muçulmanos pelos cavaleiros templários, Saladino, representado por Ghassan Massoud, parte para a guerra. O líder muçulmano é mostrado como alguém equilibrado e cavalheiresco, pelo menos até o momento em que ordena que não seja dado nenhum quartel no ataque a Jerusalém.
Jim Gianopulos, co-presidente do estúdio Fox, disse não imaginar que o filme dê razão para polêmica. ""Estamos emocionados por termos Ridley fazendo este filme",afirmou. ""Afinal, ele é o mestre do épico moderno, e esta é uma história rica em escala, aventura, romance e ação. Pelo que já pudemos ver, será um dos acontecimentos cinematográficos mais importantes de 2005."
Executivos da Warner Brothers leram o roteiro e se negaram a dividir com a Fox o financiamento do filme, mas Alan Horn, presidente da Warner, disse que a recusa não tem relação alguma com o tema, mas se deve ao fato de o estúdio estar trabalhando com outros épicos históricos. ""Achei o filme bem equilibrado, mostrando perspectivas políticas diferentes. Não é algo em preto e branco, mostrando os bons e os maus."
Apesar disso, as cenas de batalha que constam do roteiro são enormes e violentas. Ridley Scott é um dos diretores mais aclamados de Hollywood e já criou cenas de guerra inesquecíveis em filmes como ""Gladiador" e ""Falcão Negro em Perigo".
Em suas muitas cenas de devastação, o roteiro mostra momentos de intransigência de ambos os lados. ""Entregareis a cidade?" pergunta o vitorioso Saladino a Balian. Este responde: ""Antes de perdê-la, eu a queimarei até o chão. Destruirei seus lugares santos. Os nossos. Tudo o que existe em Jerusalém que leva os homens à loucura".
Perto do final do filme o roteiro descreve o exército muçulmano avançando sobre Jerusalém. Enquanto os soldados gritam ""Alá!", Saladino fala: ""Nem um homem vivo. Nem um só".

Precisão histórica
Os dois acadêmicos que leram o roteiro discordaram quanto a sua precisão histórica. Dennis disse que o Estado cruzado do século 12 era relativamente tolerante, como o que é mostrado no filme, e que Saladino de fato ordenou a suas tropas que não dessem quartel nos combates em Jerusalém, ordem que, mais tarde, revogou.
Mas Fadl afirmou que o Estado cruzado foi, por sua própria natureza, discriminatório e repressivo em relação a outras religiões. Ele disse que os cavaleiros muçulmanos levavam muito a sério a idéia de dar quartel e que a idéia de que Saladino pudesse agradecer a Balian por lhe ensinar o código da cavalaria, como consta no roteiro, é risível.
""Basta ver qualquer livro sobre a cavalaria -o que aconteceu foi o contrário", disse. ""Toda a idéia da cavalaria e dos cavaleiros veio dos muçulmanos e foi exportada para a Europa."
Fadl, assim como Dennis, observou que, na época da Cruzada mostrada no filme, a ciência e os estudos acadêmicos eram muito mais adiantados no mundo islâmico do que na Europa.
É claro que, para Hollywood, a polêmica é algo que não é necessariamente ruim. O filme ""A Paixão de Cristo", de Mel Gibson, provocou uma controvérsia acirrada quando organizações judaicas, irritadas com o retrato violento que o diretor pintou da crucificação de Jesus Cristo, acusaram o filme de anti-semitismo. Apesar disso, "A Paixão" arrecadou US$ 609 milhões de dólares de bilheteria mundial.
Resta ver se o público vai concordar. Christy Lohr, que leu o roteiro e é coordenadora do Consórcio Multifé de Educação Religiosa, de Nova York, uma associação que abrange 12 escolas de teologia, opinou: ""Acho que esse filme vai provocar uma tempestade de críticas e divulgação gratuita nas páginas de opinião e editoriais. Imagino que, para Hollywood, essa seja parte da atração do filme. É cínico, mas acho que eles gostam de mexer em casa de marimbondo".


Tradução de Clara Allain

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