São Paulo, segunda-feira, 15 de agosto de 2011

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Terra de ninguém

Único país sem governo central, a Somália é o retrato de tudo o que pode dar errado quando desastre natural e disputas tribais se unem
André Liohn/Folhapress
Construções em ruínas no centro de Mogadício mostram os efeitos de 20 anos de guerra civil

MARCELO NINIO
ENVIADO ESPECIAL A MOGADÍCIO

Futuro é um termo de curtíssimo prazo na Somália.
O país ocupa o topo do amaldiçoado ranking de Estados mais falidos do mundo. Fome, doenças, ruína econômica e balas perdidas estão sempre à espreita.
Taher Gedy, 30, balconista de uma farmácia no empoeirado centro da capital, Mogadício, faz uma expressão vazia quando questionado sobre o futuro que espera para os seus sete filhos.
"Só espero que continuem saudáveis e não sejam atingidos por um tiro", diz.
Nos últimos dias, a chegada de milhares de refugiados à capital, provocada pela pior seca dos últimos 60 anos, levou uma legião de famintos à já miserável paisagem.
Único país do mundo sem um governo central, após duas décadas de guerra civil, a Somália é um retrato de tudo o que pode dar errado quando desastre natural e disputas tribais se unem.
Estatísticas confiáveis são raras, já que grande parte do país é inacessível às agências internacionais. A expectativa de vida, segundo o Unicef, mal chega a 50 anos.
Por quatro dias, sob forte escolta armada, a reportagem da Folha circulou pelas esburacadas ruas de Mogadício, visitando hospitais, campos de refugiados e a sede do governo transitório, que controla alguns distritos da capital.
O resto do país está mergulhado em um caos disputado por clãs e pela temida milícia islâmica Shabab (jovens, em árabe), ligada ao grupo terrorista Al Qaeda. Uma terra de ninguém em que nem a ONU se arrisca a entrar.
Mesmo na capital, a segurança é tão precária que a ONU delega a organizações locais a assistência humanitária. Poucos conhecem tão bem a violência e o fanatismo do país como o cirurgião Mohammad Yusuf.
Diretor do Hospital Medina, um dos maiores da capital, sua rotina é atender às dezenas de vítimas de armas de fogo. "Não faço perguntas", diz Yusuf, ao ser questionado se a maioria das vítimas é de soldados, milicianos ou civis. "Dependo da neutralidade para continuar trabalhando."
Yusuf sabe o que diz. Fã de Roberto Carlos e de música clássica, que aprendeu a apreciar nos 22 anos em que viveu em Roma, o médico escapou por milagre de um atentado há alguns anos, nos arredores de Mogadício.
Seu carro foi atingido por mais de 60 tiros disparados por milicianos do Shabab, insatisfeitos com seus gostos "ocidentais", embora ele seja muçulmano praticante. Depois disso, se mudou com a mulher para o hospital.
Os grandes blindados da Amisom (missão de paz da União Africana) dividem as ruas da capital com carroças puxadas por burros e um comércio informal, a porção mais ativa da economia.
A seca arruinou boa parte da agricultura familiar e do rebanho de vacas e ovelhas. Até camelos estão morrendo de sede. Serviços municipais são praticamente inexistentes e o errático fornecimento de eletricidade é um luxo para poucos. Vans caindo aos pedaços fazem o transporte de quem tem como pagar.
Uma montanha de lixo tomou conta do píer perto da parte antiga da cidade, onde o casario italiano dos tempos de colônia está em ruínas.
Caminhando sobre os restos de peixes e outros animais putrefatos, o desempregado Maher Kassem, 29, conta que sobrevive de bicos que nunca lhe rendem mais de R$ 30 por mês. Quando pode, joga futebol, sua única diversão.
Um fio de esperança surgiu depois que os milicianos do Shabab saíram da capital.
Mais que alívio, porém, a repentina saída provocou perplexidade. "Ninguém sabe por que eles saíram, nem para onde", admite o policial Rashid Mohamed, 39, enquanto caminha ao lado do mercado Bakara, que centralizava o poder do Shabab.
Mohamed também evita falar do futuro. "Todo mundo sabe que eles podem voltar a qualquer momento".

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folha.com.br/fg4128


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