São Paulo, domingo, 15 de setembro de 2002

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ARTIGO

Os EUA precisam unir o mundo, não dividi-lo

BILL CLINTON

A realidade central do mundo no século 21, conforme deixam claro a expansão do terrorismo e a vulnerabilidade dos Estados Unidos a ele, é que nosso mundo é globalmente interdependente, mas está longe de ser integrado.
Aprendemos em 11 de setembro de 2001 que as próprias forças da globalização que ajudamos a criar -fronteiras abertas e livre comércio, facilidade para viajar, comunicações instantâneas, transferências instantâneas e acesso ampliado às informações e à tecnologia- podem ser usadas para construir ou para destruir, para unir ou para dividir.
Ao mesmo tempo, divergências antigas assumiram uma urgência assustadora, especialmente o impasse violento no Oriente Médio e o conflito entre Índia e Paquistão em torno da Caxemira.
Para podermos progredir nesses e em outros desafios globais, será preciso desenvolver uma estratégia mais ampla para a política externa americana, estratégia essa que tenha suas raízes num compromisso fundamental de fazer o mundo avançar da interdependência rumo a uma comunidade global integrada e comprometida com a paz, a prosperidade, a liberdade e a segurança.
No cerne de todas essas lutas existe uma batalha global em torno de idéias, especialmente no mundo islâmico, onde rivalidades fundamentalistas distorceram a religião de modo a justificar o assassinato de inocentes por meio de suicídio, como se fosse uma ferramenta política legítima abençoada por Allah.
Essa batalha épica gira em torno de três dúvidas muito antigas e fundamentais: podemos ter comunidades inclusivas, ou elas precisam necessariamente ser excludentes? Podemos ter um futuro comum, ou nossos futuros serão obrigatoriamente separados? Podemos ser donos da verdade inteira, ou devemos nos unir a outros na busca pela verdade?
Esses dilemas representam possivelmente os mais duradouros enigmas da história humana: é possível as pessoas basearem sua identidade principalmente em associações positivas, ou o sentido da vida também requer que sejam traçadas comparações negativas com outros? Desde a época em que o homem saiu das cavernas e começou a formar clãs, sua identidade tinha raízes tanto em associações positivas com outros semelhantes a ele quanto em visões negativas daqueles que viviam fora de sua comunidade. Esse tipo de autodefinição vem dominando as sociedades humanas durante a maior parte dos mais de 6.000 anos de história das civilizações.
Apesar de todos os avanços conquistados no passado, quase destruímos o planeta na primeira metade do século 20. A idéia de uma comunidade global de membros cooperantes só foi institucionalizada com a fundação da ONU, em 1945. Sua concretização só se tornou possível, em termos práticos, quando, na década de 1970, a China decidiu aproximar-se do resto do mundo e, em 1989, o Muro de Berlim caiu por terra. Desde então, o mundo vem sendo consumido por conflitos religiosos, raciais, étnicos e tribais.
Está claro que a hostilidade e a violência entre povos distintos não é algo que seja geneticamente previsto. As pessoas podem desconfiar mutuamente do ""outro", mas precisam ser ensinadas e lideradas para que matem. Nosso desafio é descobrir uma maneira pela qual as pessoas possam desfrutar os benefícios e a identidade de suas comunidades distintas e, ao mesmo tempo, integrar comunidades maiores, com sucesso. A União Européia constitui um exemplo brilhante de como antigos inimigos podem conservar suas identidades nacionais e, mesmo assim, tornar-se aliados estreitos.
Uma idéia de comunidade requer a crença num futuro compartilhado, não separado -um futuro no qual cada um tenha seu papel a cumprir, cada um tenha sua importância própria e todos nós nos saiamos melhor quando ajudarmos uns aos outros.
A crença num futuro compartilhado exige que se rejeite a alegação fundamentalista radical de que se possui a verdade inteira, dando preferência à idéia de que a vida é uma viagem em busca da verdade e que todos nós temos algo a contribuir para ela. Isso nos leva ao cerne daquilo que valorizamos na comunidade global integrada: nossas diferenças são importantes, mas nossa condição humana comum é mais importante do que elas.
O desafio dos radicais islâmicos encarna todas essas questões fundamentais. As pessoas que apóiam Osama bin Laden e acreditam em sua visão do mundo querem comunidades excludentes, e não inclusivas. Elas fazem questão de um futuro separado, baseado em sua versão própria da verdade. Todos esses elementos estão na base do conflito entre Índia e Paquistão e da divisão entre israelenses e palestinos. Os grupos violentos com reivindicações exclusivas a um futuro separado são ativos na Indonésia, nas Filipinas, na Colômbia e em outras regiões.
O mundo político e ideológico precisa fazer o que o mundo econômico já fez: desenvolver uma consciência global que abra espaço para a inclusão, para um futuro compartilhado e uma busca cooperativa pela verdade.
Esse não é, como afirmam alguns, um conceito ocidental. A economia que cresce mais rapidamente no Oriente Médio é a de Dubai, um Estado muçulmano que chega ao ponto de buscar residentes vindos de outros países e que, sem alarde, vem se integrando ao mundo moderno. Os líderes de Dubai optaram por um futuro compartilhado, baseado nas possibilidades de amanhã.
Transformar essas idéias em ações levará tempo e exigirá mais do que apenas discursos. Precisamos combater o terrorismo e a violência que ameaçam desestabilizar o mundo com uma política externa e de segurança forte, traçada com vistas a gerar mais parceiros e menos terroristas. Nossa política de segurança deve incluir cinco elementos principais.
Em primeiro lugar, devemos apoiar o presidente George W. Bush e nossos militares para que concluam a tarefa de retirar Osama bin Laden e os outros líderes da Al Qaeda do Afeganistão.
Em segundo, precisamos fazer tudo o que pudermos para pôr fim ao programa norte-coreano de mísseis nucleares. Esse é um problema muito grande. A Coréia do Norte pode não conseguir cultivar alimentos em quantidade suficiente para alimentar sua população, mas constrói mísseis de primeira categoria e os vende a nossos adversários.
Durante minha administração, conseguimos pôr fim ao programa nuclear da Coréia do Norte e aos testes de mísseis de longo alcance conduzidos por esse país. Ao final de meu segundo mandato, chegamos perto de um acordo que colocaria fim por completo a seu programa de mísseis. A chave para o acordo final seria uma visita presidencial à Coréia do Norte. Eu estava disposto a ir, mas, nas últimas semanas de minha administração, tivemos de focalizar todas as nossas energias na aparente chance de conseguir um acordo de paz no Oriente Médio. Decidi não colocar essa chance em risco ao fazer uma viagem que teria de incluir a África do Sul, a China e o Japão.
Continuo convencido de que é possível negociar o fim do programa norte-coreano, desde que a administração Bush faça disso uma de suas principais prioridades.
Em terceiro lugar, precisamos restringir a produção e a distribuição de armas químicas, biológicas e nucleares pequenas. Sabemos que Saddam Hussein é uma fonte de preocupação contínua, porque seus laboratórios estão ativos. Suas Forças Armadas estão muito mais fracas do que estavam no momento da Guerra do Golfo, mas a ameaça de seus laboratórios é real. Não é tão imediata quanto a necessidade de reiniciar o processo de paz no Oriente Médio e interromper a violência nessa região, e pode não exigir uma invasão, mas deve ser enfrentada.
Em quarto lugar, devemos aumentar a capacidade de nossos aliados de enfrentar o terror. Apóio o que o presidente Bush vem fazendo para ajudar a presidente Gloria Arroyo, nas Filipinas. Também acredito que Bush tenha razão ao ampliar a utilização de nossa assistência à Colômbia, visando a salvar uma das mais antiga democracias latino-americanas das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC). As FARC são, na realidade, terroristas a serviço de traficantes de drogas que querem transformar a Colômbia no primeiro narco-Estado do mundo.
Também devemos apoiar nossos aliados na África que estão tentando se organizar para formar sociedades coerentes. Uma das melhores maneiras de fazê-lo é continuar a financiar a Iniciativa de Reação a Crises na África.
Lançado durante meu governo, esse programa dá apoio americano a uma força militar africana mista que pode ir aonde sua presença se fizer necessária, de modo que os africanos possam atuar como suas próprias forças de manutenção da paz, lidando eles mesmos com seus próprios terroristas e conflitos tribais. Espero que a administração Bush não reduza as verbas destinadas a esse programa.
Em quinto lugar, precisamos melhorar as defesas domésticas e a cooperação. Sou a favor da criação de um novo Departamento da Segurança Interna, desde que ele possua a autoridade necessária para fazer com que todas as agências relacionadas operem em cooperação estreita e desde que tenha acesso imediato às informações que elas gerem.
Mais parceiros, menos terroristas. Além dessas cinco medidas defensivas, é crucial para nosso novo enfoque de política de segurança e externa que tenhamos uma visão, como tiveram nossos antecessores após a Segunda Guerra, para a construção de um mundo melhor, com mais parceiros e menos terroristas.
O princípio condutor desse mundo reordenado vem diretamente da filosofia da "Terceira Via": autonomia, oportunidade e responsabilidade.
O primeiro passo consiste em ter mais instituições internacionais, e instituições que sejam mais eficazes. Já vimos o sucesso do Nafta [sigla em inglês para Acordo de Livre Comércio da América do Norte] e da OMC (Organização Mundial do Comércio). Estamos vendo como foi acertado incluir a China na OMC. Nosso compromisso com a Alca (Área de Livre Comércio das Américas) e o livre comércio é correto. Agimos corretamente ao ratificar a Convenção de Armas Químicas, ampliar a Otan e apoiar a ampliação da União Européia.
Por outro lado, acho que o Senado sob controle republicano errou ao rejeitar o tratado que proíbe testes nucleares que minha administração negociou, decisão essa com a qual, infelizmente, a administração Bush concorda.
Acho que o governo atual errou ao rejeitar o Protocolo de Kyoto e o acordo do Tribunal Penal Internacional que havíamos assinado. A rejeição do Protocolo de Kyoto vai dificultar o combate ao flagelo da degradação ambiental, especialmente o aquecimento global e a deterioração dos oceanos.
O segundo pilar dessa estratégia deve ser oferecer mais alívio da dívida aos países pobres do mundo. O alívio da dívida que promovemos em 2000 já gerou alguns resultados espantosos, porque se baseou na exigência de que todo o dinheiro poupado fosse aplicado em educação, saúde e desenvolvimento, gerando oportunidades e exigindo responsabilidade. Essa iniciativa recebeu amplo apoio internacional e contou com grande apoio bipartidário no Congresso americano. Devemos levá-la adiante com uma nova rodada que inclua países cuja renda supere os níveis máximos permitidos hoje, mas que apresentem índices altos e debilitantes de Aids.
Em terceiro lugar, devemos aumentar os investimentos em assistência externa. Os EUA gastam uma porcentagem menor de sua receita em assistência externa do que qualquer outro país desenvolvido. O presidente Bush deu um primeiro passo positivo em março passado, na cúpula sobre assistência externa realizada em Monterrey, no México, quando prometeu elevar nossa ajuda externa em US$ 10 bilhões, para que chegue a US$ 15 bilhões anuais. Mas mesmo isso nos deixará com 20% da receita nacional, abaixo do previsto no último Orçamento redigido por um Congresso de maioria democrata, em 1994.
O secretário-geral da ONU, Kofi Annan, pediu US$ 10 bilhões por ano para combater a Aids e outras doenças infecto-contagiosas. Devemos pagar nossa parte desse valor. Mais de 10 milhões de crianças nos países pobres estão sem escola. Em 2000, destinamos US$ 300 milhões para financiar uma boa refeição por dia para as crianças pobres, desde que elas frequentassem a escola. O resultado foi um aumento impressionante no índice de crianças matriculadas nas escolas. Devemos ampliar esse programa.
Em quarto lugar, devemos intensificar nossos esforços para levar a paz aos lugares mais problemáticos do mundo: o Oriente Médio e o subcontinente indiano.
Com uma política de segurança forte, um esforço vigoroso para criar mais parceiros e menos terroristas e uma luta implacável para vencer a batalha das idéias, os EUA poderão fazer muito para fazer o mundo avançar da interdependência para a integração numa comunidade global que construa um mundo digno de nossos filhos.


O democrata Bill Clinton, 56, foi presidente dos EUA de 1992 a 2000

Este artigo foi publicado originalmente na "Blueprint" -revista do Conselho da Liderança Democrata; depois, saiu publicado na "Salon"

Tradução de Clara Allain


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