São Paulo, domingo, 15 de setembro de 2002

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Ação preventiva fere lei internacional, dizem analistas

MARCIO AITH
DE WASHINGTON

Ainda que os atentados de 11 de setembro de 2001 tenham motivado os EUA a buscar uma nova lógica para as regras internacionais, a doutrina de ataques preventivos proposta pelo presidente George W. Bush viola expressamente o atual conjunto de normas que regem a relação entre os Estados, as quais restringem o direito à autodefesa e reservam ao Conselho de Segurança da ONU o poder de decidir o uso da força.
Essa é a opinião da maioria dos especialistas em direito internacional nos EUA, para quem os esforços da Casa Branca para obter uma resolução do conselho para atacar o Iraque podem poupá-la de uma discussão jurídica que lhe é altamente desfavorável .
Eles lembram, no entanto, que os EUA não correm o risco de sofrer sanções por terem direito de veto no próprio Conselho de Segurança.
Portanto, a discussão sobre a legalidade de seus atos tem natureza essencialmente política, e não jurídica. Além disso, admitem que, no caso específico do Iraque, existem formas de respaldar legalmente um ataque preventivo usando resoluções anteriores da própria ONU.
Mas dizem que essas formas são frágeis, e a Casa Branca tem conhecimento disso, já que o próprio governo americano condenou vigorosamente o uso preventivo da força durante casos clássicos do pós-guerra: em 1981, quando Israel destruiu o reator nuclear em Osiraq, no Iraque; e em 1956, quando Reino Unido, França e Israel, num ataque preventivo, retomaram o canal de Suez, do Egito.
No caso do reator iraquiano, quando a relação entre os EUA e o Iraque era amena, os argumentos da Casa Branca foram enfaticamente contrários aos utilizados por ela agora.
À época, os EUA alegaram que Israel não poderia invocar o direito à autodefesa conferido pela ONU por não ter sido atacado pelo Iraque. Além disso, os EUA opinaram que, se generalizada, a prática de ataques unilaterais preventivos poderia levar o mundo ao caos.
Israel defendeu-se em 1981 dizendo que as leis internacionais não são pactos suicidas e que o exercício do direito de defesa só pode ser preventivo quando a ameaça envolve armas de destruição em massa.
Desde os eventos do ano passado, os EUA passaram a adotar as mesmas razões manifestadas por Israel em 1981. No entanto, como disseram vários especialistas à Folha, o estatuto da ONU ainda se baseia nos princípios da "contenção" e da "dissuasão".
O capítulo 7 do estatuto reconhece o direito de autodefesa dos países (individual ou coletivamente), mas condiciona qualquer outra forma de ação militar à autorização do Conselho de Segurança.

Estado de guerra
Uma alternativa da Casa Branca no caso do Iraque seria argumentar que a resolução 687 do Conselho de Segurança da ONU, que definiu os termos do cessar-fogo na Guerra do Golfo, em abril de 1991, dá aos EUA respaldo para atacar novamente o Iraque, desta vez de forma preventiva.
A resolução exigiu do ditador Saddam Hussein a eliminação de todas as armas de destruição em massa, o reconhecimento das fronteiras do Kuait e o fim da perseguição à população iraquiana xiita e curda.
"Quando o Iraque viola as condições do cessar-fogo, o estado de guerra é imediatamente restaurado", afirmou Ruth Wedgwood, professora de direito da Universidade de Yale. "Dessa maneira, o direito original dos EUA - e da comunidade internacional- de atacar o Iraque para preservar a paz e a segurança na região é reativado."
Essa mesma lógica já fora invocada contra o Iraque em dezembro de 1998, quando os EUA e o Reino Unido lançaram a maior ofensiva militar contra Saddam desde a Guerra do Golfo, matando cerca de 70 pessoas e instigando um debate legal muito parecido com o que se desenvolve atualmente.
Aquele ataque fora conduzido sob o fundamento legal de que, como Saddam violara zonas de exclusão aérea, um novo bombardeio poderia ser legitimado pelo mandato original do Conselho de Segurança, expedido sete anos antes.
As zonas de exclusão haviam sido impostas pelos EUA e pelo Reino Unido logo após a guerra de 1991, para obrigar o Iraque a respeitar os termos do cessar-fogo.
Rússia, China e França, membros permanentes do Conselho de Segurança que haviam apoiado os EUA na Guerra do Golfo, condenaram os ataques de 1998 e consideraram frágeis os argumentos que, sob a ótica do presidente dos EUA à época, Bill Clinton, o legitimariam.
Ainda que a resolução 687 não tenha eliminado a autorização para o uso da força concedida anteriormente - e com isso tenha, em tese, permitido novos ataques -, os três países divergiram dos EUA e do Reino Unido usando dois argumentos: as zonas de exclusão não faziam parte dos termos do cessar-fogo; e, mesmo se o acordo de paz tivesse sido flagrantemente violado pelo Iraque, o Conselho de Segurança da ONU precisaria conceder nova autorização para legitimar outro ataque.

Poder de decisão
"É óbvio que um ataque preventivo seria ilegal, mesmo no caso do Iraque", disse Hurst Hunnum, da Fletcher School of Law and Diplomacy. "A resolução do cessar-fogo reserva exclusivamente ao Conselho de Segurança, e não a países individualmente, o poder de decidir se o cessar-fogo foi ou não violado."
Há outros obstáculos legais no caminho dos EUA. A comunidade e as normas internacionais tendem a ser elásticas em casos de ação preventiva quando um país estiver sob a mira óbvia e iminente de um ataque. Ainda assim, a autodefesa deve ser exercida de forma comedida.
O problema é que, como Bush já deixou claro seu desejo de mudar o regime no Iraque -e não somente o de eliminar as armas de destruição em massa-, é improvável que os EUA atuem de forma comedida.
"Os EUA acreditam que haja uma distância enorme entre o mundo pós-11 de setembro e os estatutos da ONU", diz Anthony Clark Arend, professor da Universidade de Georgetwon.


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