São Paulo, domingo, 15 de setembro de 2002

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ESTRATÉGIA

Lições da Guerra do Golfo e da campanha no Afeganistão indicam limitações do poder aéreo para coagir inimigo

Forças terrestres serão decisivas no Iraque

RICARDO BONALUME NETO
DA REPORTAGEM LOCAL

Uma guerra com o Iraque vai ter de, necessariamente, envolver não só a aviação americana em larga escala, como também forças terrestres em quantidade bem maior do que as utilizadas recentemente no Afeganistão.
Mas o principal requisito para haver guerra não é militar e sim político-diplomático: costurar alianças que permitam que os EUA derrubem o ditador Saddam Hussein. Sem uma base de partida para as forças terrestres, a tarefa americana torna-se quase impossível.
Essas duas colocações são o consenso básico entre os especialistas militares, embora exista muita discussão sobre qual "cenário" poderá caracterizar a guerra.
Lições dos ataques aéreos na Guerra do Golfo, em 1991, contra o mesmo Iraque, dos realizados nos Bálcãs em 1995 e 1999 e da campanha no Afeganistão indicaram as limitações do poder aéreo para coagir um inimigo.
Sem a participação do Kuait como base das forças americanas, a guerra contra Saddam torna-se muito mais difícil. O uso de bases na Arábia Saudita e Turquia também facilitaria em muito a empreitada.
"A necessidade de força decisiva reforça outra lição da guerra afegã: não entre em guerra sem o apoio de uma forte coalizão internacional e dos aliados-chave regionais", afirma Anthony Cordesman, do Centro para Estudos Estratégicos e Internacionais, de Washington. Isso significa, diz ele, bases em Arábia Saudita, Kuait e Turquia, além do apoio "tácito" de países como Egito e Jordânia.
Cordesman escreveu, junto com Abraham Wagner, um alentado estudo sobre as "lições" da Guerra do Golfo. São 1.022 páginas de uma obra que desce a detalhes técnicos bizantinos para o leigo, como as diferenças de desempenho das versões M1-A1 e M1-A2 do tanque americano Abrams, ou das diferentes bombas, granadas e fuzis usados.
Apesar desse currículo, ao comentar a hipótese de guerra com o Iraque, Cordesman enfatiza os fatores político-diplomáticos mais do que os militares.
Ele adota um tom imperativo e professoral para dar suas opiniões: "Não use uma força militar americana pequena, envie mais do que o necessário para poder ganhar rapidamente"; "não conte com o poder aéreo e/ou a oposição iraquiana como um substituto para o poder terrestre americano e aliado".
Kenneth Pollack, que foi diretor de assuntos do golfo de 1999 a 2001 no Conselho de Segurança Nacional dos EUA, defendeu em artigo na revista especializada "Foreign Affairs" uma invasão maciça a partir do Kuait empregando entre 200 mil e 300 mil tropas, apoiadas por até mil aviões.
Pollack acredita que uma força menor possa dar conta da guerra, mas prefere não arriscar. Ele acha que sejam necessários cinco meses para reunir essa força no Kuait, mas que, em um mês, a guerra estaria ganha.
"Os aspectos militares de uma invasão, na verdade, possivelmente serão a parte mais fácil", diz; o impacto diplomático vai ser mais difícil de lidar, "com sua severidade diretamente relacionada com a duração da campanha e a certeza do seu resultado".
Já os militares têm mais cautela. O general da reserva Anthony Zinni, um fuzileiro naval (marine) que chegou a chefiar o Comando Central das forças americanas, declarou que as pessoas mais entusiasmadas por uma guerra com o Iraque eram gente que nunca tinha estado em combate -e que os militares tendiam a pensar de outro modo.
Outro fuzileiro naval, o piloto Scott Cooper, participou dos ataques aéreos em Kosovo em 1999, quando a Otan (aliança militar ocidental) tentou coagir os sérvios a parar a perseguição da etnia albanesa.
Um artigo de Cooper publicado no "Washington Quarterly" descreveu brilhantemente as limitações do poder aéreo nos conflitos atuais, com a autoridade de quem foi parte dele, pilotando o avião de guerra eletrônica e ataque EA-6B Prowler, especializado em atacar radares da defesa aérea.
"A crença de que o poder aéreo usado sozinho possa vencer um inimigo é perigosa para qualquer pensador estratégico ou estadista", disse ele, argumentando que vários fatores auxiliaram a Otan nas suas intervenções nos Bálcãs. Em 1995, contra os sérvios da Bósnia, foi uma ação terrestre croata que alterou o equilíbrio militar. Em 1999, em Kosovo, outros fatores contaram, como a ameaça de ataque terrestre e a perda do apoio diplomático russo.
Especialistas como Cooper e Cordesman lembram que os sérvios também aprenderam lições da guerra com o Iraque em 1991 e que os iraquianos agora aprenderam lições em Kosovo.
Por exemplo, o Iraque hoje usa menos os radares de defesa aérea das baterias de mísseis, pois basta ligá-los para eles virarem alvo de armas guiadas pela radiação. Mas um radar mais distante pode servir para guiar os mísseis contra os aviões americanos.
"O poder aéreo depende exclusivamente de inteligência precisa e oportuna para sua eficácia", afirma o piloto e também especialista em estudos internacionais.
No Afeganistão isso ficou claro, mas quem provia a inteligência "precisa e oportuna" eram justamente tropas terrestres, os soldados de forças especiais que acompanhavam as forças anti-Taleban da Aliança do Norte.
O poder aéreo americano desequilibrou a balança entre as forças em combate no Afeganistão. Mas não existe no Iraque uma oposição igualmente poderosa a Saddam, o que tornaria necessário enviar mais tropas americanas.
O Iraque concentra suas forças mais poderosas e móveis no sul do país, especialmente quatro divisões blindadas, uma delas da Guarda Republicana. Suas divisões de infantaria são basicamente estáticas, para defesa local.
Em 1991, o objetivo era expulsar os iraquianos do Kuait, e a luta se deu em terreno desértico, que favoreceu os ataques aéreos e a movimentação das poderosas forças blindadas americanas. Agora, os iraquianos podem optar por lutar em cidades, deixando de ser alvos fáceis e criando a possibilidade de milhares de baixas civis. Mesmo o Exército tão rapidamente derrotado em 1991 pode conseguir isso.


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