São Paulo, sábado, 15 de outubro de 2005

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AMÉRICA CENTRAL

Ex-presidente da Nicarágua segue discurso antiamericano dos anos 80 em nova corrida presidencial

Ortega tenta volta ao poder mirando EUA

DANNA HARMAN
DO "USA TODAY", EM EL JICARAL (NICARÁGUA)

Pouca coisa mudou neste povoado nas duas últimas décadas. As mulheres ainda lavam roupa no rio. O gado pasta entre os cactos. Vaqueiros tomam cerveja no bar local.
E, num aparente flashback dos anos 80, o líder sandinista Daniel Ortega discursa num comício na praça da cidade. Diante da pequena multidão de lavradores, ele fala sobre os males do capitalismo e dos Estados Unidos. "Os EUA não mandam mais na América Latina!", ele vociferou numa noite do mês passado. "Os ianques não mandam mais na Nicarágua!"
Quinze anos depois de ser afastado do poder, o revolucionário marxista está fazendo campanha novamente, na esperança de juntar-se a um grupo crescente de políticos populistas de esquerda que vêm tomando o poder na América Latina.
Aos 59 anos, Daniel Ortega espera ser um dos três candidatos na eleição presidencial da Nicarágua, marcada provisoriamente para novembro de 2006. Uma vitória dele marcaria um revés para o governo Bush, que vem assistindo enquanto Argentina, Venezuela, Brasil e Bolívia vêm se afastando dos mercados liberais e das políticas sociais conservadoras defendidas pelo presidente Bush.
Ortega está em último lugar nas sondagens de opinião, mas suas chances vêm melhorando em função da aliança incomum que formou com o ex-presidente conservador Arnold Alemán, que foi condenado por corrupção, mas manteve o controle sobre o Partido Liberal Constitucionalista. Em visita que fez a Manágua na semana passada, o vice-secretário de Estado dos EUA, Robert Zoellick, disse que os dois políticos têm um "pacto corrupto" e estão impelindo a Nicarágua em direção a um "golpe sorrateiro".

Volta por cima
Uma vitória de Ortega assinalaria uma volta por cima extraordinária para o político sandinista. Os eleitores o afastaram da Presidência nas eleições de 1990 e o rejeitaram novamente em 1996 e em 2001. Enquanto isso, Ortega foi obrigado a refutar acusações de que teria embolsado fundos bancários nacionais e, na década de 1980, entregue terras nacionalizadas a aliados sandinistas.
Mais recentemente, foi acusado por sua enteada de ter abusado sexualmente dela quando ela era criança (um tribunal nicaragüense arquivou a acusação de estupro feita a Ortega). Envelhecido, o ex-líder guerrilheiro ainda chefia o partido sandinista, que possui a segunda maior bancada no Parlamento nicaragüense, mas seu partido vem sofrendo os efeitos de disputas internas e da debandada de outros revolucionários.
De acordo com o instituto de sondagens costarriquenho B&A, Daniel Ortega está neste momento em terceiro lugar nas intenções de voto dos nicaragüenses. O ex-sandinista Herty Lewites tem 35% das intenções de voto, o candidato de centro-direita Eduardo Montealgre tem 23% e Ortega tem 20%.
A comissão eleitoral nacional, com a qual Ortega possui conexões estreitas, já excluiu a possibilidade de um segundo turno entre os dois candidatos mais votados, no caso de um dos candidatos conquistar ao menos 35% dos votos -a porcentagem tradicionalmente obtida pelos sandinistas.
Em seus comícios, Ortega faz vagas promessas de ajuda aos pobres da Nicarágua -mais escolas, saúde gratuita-, mas não oferece detalhes sobre como pretende pagar por isso. Diz que vai combater a aprovação do Acordo de Livre Comércio da América Central, um acordo comercial com os EUA e países vizinhos que segue o exemplo do Nafta. Além disso, promete combater o que, para ele, é a ingerência dos EUA em assuntos da Nicarágua.
A ressurreição política de Daniel Ortega é vista com preocupação em Washington. Para o embaixador americano Paul Trivelli, que assumiu o cargo na Nicarágua há pouco, as credenciais democráticas de Ortega são "muito duvidosas".
Roger Noriega, que até recentemente era subsecretário de Estado dos EUA para a América Latina, disse ao jornal "La Prensa", de Manágua, que o líder sandinista é um "delinqüente". Para ele, se os sandinistas voltarem ao poder, a Nicarágua "vai afundar como uma pedra e chegar tão fundo quanto Cuba".
Os embates de Ortega com os EUA datam de 1981. Foi nesse ano que a administração Reagan, temendo o surgimento de uma ameaça comunista na região, começou a organizar e financiar os rebeldes "contras" para combater o governo sandinista a partir de bases nos vizinhos Honduras e Costa Rica.
Para Ortega, sua vitória "levantaria o moral da América Latina. Outros países diriam: "Vejam só, esse país pequeno conseguiu -então nós também podemos!". Vamos espalhar a revolução".
Victor Borge, diretor da B&A, não prevê que isso aconteça. Os outros países da América Central são encabeçados por políticos moderados. El Salvador, Costa Rica, Panamá e Honduras vêm rejeitando o chamado pelas políticas socialistas que estavam em voga no anos 80, do mesmo modo que vêm evitando o antiamericanismo estridente que emana de boa parte da América do Sul hoje.
"Se Ortega conseguir chegar ao poder em 2006, isso realmente será um fato importante, simbolicamente falando, e poderá motivar outros líderes de esquerda", diz Borge. "Mas essa possibilidade não parece sintonizada com o clima dominante na região."
Mesmo assim, uma ingerência dos EUA na eleição favoreceria Ortega, diz Carlos Fernando Chamorro, apresentador de um programa político na TV nicaragüense e ex-editor do jornal sandinista "Barricada". Para ele, Washington está presa ao passado. Os representantes da administração Bush na política norte-americana na América Latina "são remanescentes dos anos 80 que ainda agem como se estivéssemos no meio da Guerra Fria", diz ele.
Otto Reich, um dos principais arquitetos da política dos EUA na região sob Ronald Reagan e George W. Bush, retruca: "Ortega é comunista. Se ele vencer, não haverá investimento externo nem ajuda dos EUA".
De acordo com ele, é Ortega quem "está preso aos anos 60, agindo como bolchevique". Reich diz, ainda, que a hipótese de interferência dos EUA "é piada".
A Nicarágua é o segundo país mais pobre do hemisfério, perdendo apenas para o Haiti. De acordo com o economista Adolfo Acevedo, de Manágua, 45% de seus 5,5 milhões de habitantes vivem com menos de US$ 1 por dia. Ainda segundo Acevedo, um terço da população de mais de 15 anos de idade é analfabeta.
Para os seguidores que vêm ouvi-lo em sua campanha, Ortega oferece mais nostalgia do que planos concretos para o futuro. "Bush é o Reagan de nossos tempos", diz ele a uma multidão sob o sol abrasador de Santa Rosa del Piñón, povoado nas montanhas. "O ianque Reagan proibiu a paz", brada. "Ele queria levar morte e destruição a nossa região."
Adultos aplaudem e crianças se aproximam para ganhar bandanas sandinistas gratuitas. Velhos hinos rebeldes saem dos alto-falantes. A mulher de Ortega, a poeta revolucionária Rosário Murillo, estende seus braços para o alto.
O adversário Lewites diz que não compartilha a obsessão de Ortega com os EUA, mas acrescenta que tampouco procura a aprovação de Washington. "Acho que devemos manter boas relações com os EUA", ele pondera.
Ortega insiste que os EUA são "a" grande questão para os eleitores. As eleições na Nicarágua são "um confronto entre os EUA e a Frente Sandinista". "Os EUA farão qualquer coisa para nos dizimar. Mas nós estamos aqui."


Tradução de Clara Allain

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