São Paulo, terça-feira, 15 de novembro de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ARTIGO

Trinta anos de negligência incendiaram a França

DOUGLAS IRELAND

O tsunami de vandalismo, incêndios criminosos e tumultos, iniciado nos guetos dos subúrbios de Paris não deveria ser causa de surpresa. É o resultado de 30 anos de negligência governamental -a incapacidade das lideranças políticas francesas, tanto de esquerda quanto de direita, para promover qualquer esforço sério de integração da população muçulmana e negra à economia e à cultura da França, e o racismo profundo, doloroso e destrutivo que os jovens desempregados e profundamente alienados dos guetos enfrentam a cada dia.
Os guetos em que o ressentimento supurado agora irrompeu em chamas foram criados pelo Estado francês como resultado de sua política industrial. Por que a população francesa de origem imigrante -em sua maioria árabe, com alguma presença negra- é tão grande hoje em dia (mais de 10% do total de habitantes do país)? Porque durante os anos de prosperidade que se seguiram à Segunda Guerra, a política oficial do governo era recrutar nas colônias ultramarinas os trabalhadores braçais necessários. Os trabalhadores imigrantes, oriundos primordialmente da África do Norte, eram necessários para permitir que a economia francesa se expandisse a despeito da falta de potencial humano causada pelas duas guerras mundiais. Além disso, o setor industrial preferia os operários imigrantes por considerá-los mais passivos e menos inclinados a aderir a sindicatos.
Esse influxo de trabalhadores árabes patrocinado pelo governo e pela indústria foi reforçado, depois da independência da Argélia, pela chegada dos harkis, os nativos argelinos que lutaram e trabalharam pela França durante a guerra pela independência da colônia e foram tratados de maneira horrível pelas autoridades francesas. Cerca de 100 mil harkis foram mortos pela Frente de Libertação Nacional argelina depois que os franceses desavergonhadamente os abandonaram a um destino letal, quando o Exército de ocupação retirou os colonos franceses da Argélia. Além disso, as famílias de harkis que foram salvas, muitas vezes por iniciativa de comandantes militares que se recusaram a obedecer as ordens, terminaram abrigadas em campos de concentração imundos e superlotados, na França, por muitos anos, e não se beneficiaram de qualquer assistência governamental uma excelente recompensa pelos sacrifícios que fizeram em nome da França, da qual eram, afinal, cidadãos. Os filhos e netos dessas famílias, criados em guetos, naturalmente abrigam certo ressentimento.


Os guetos em que o ressentimento supurado agora irrompeu foram criados pelo Estado francês como resultado de sua política industrial

Os demais trabalhadores imigrantes franceses encontraram morada em imensos edifícios de apartamentos de aluguel controlado, conhecidos como cités, especialmente construído para eles e posicionados deliberadamente fora das vistas da população em geral, nos subúrbios que cercavam a maioria das aglomerações urbanas francesas, de modo que a pele escura de seus habitantes não poluísse os centros das cidades. Agora, chegando aos 40 e 50 anos, esses imensos armazéns de seres humanos estão decaídos, dilapidados, e se tornaram lugares sinistros com elevadores quebrados, sistemas de aquecimento que não funcionam no inverno e fezes de cachorro nos corredores. Praticamente não existe comércio em torno deles, e as compras de produtos básicos são quase sempre limitadas e difíceis, enquanto as instalações de entretenimento e recreação para os jovens são truncadas e inadequadas, se é que existem. Os apartamentos e as escolas, muitas vezes dirigidas por professores cansados, cínicos e indiferentes, sofrem de terrível excesso de lotação.
Para a massa dos franco-árabes, a atual rebelião é um grito de angústia de uma geração perdida que está em busca de uma identidade. Na França, tumulto é o idioma dos adolescentes, crianças apanhadas entre duas culturas e excluídas de ambas, crianças que, nascidas na França e muitas vezes sem falarem árabe, não conhecem o país em que seus pais nasceram mas se sentem excluídas, marginalizadas e invisíveis no país em que vivem.
Em 1990, o presidente socialista François Mitterrand descreveu como era a vida dos jovens dos guetos, aglomerados nas cités superlotadas. "Que esperança tem um jovem nascido em um bairro sem alma, cercado apenas de feiúra, aprisionado pelas muralhas cinzentas em uma terra baldia também cinzenta, e condenado a uma vida cinzenta, enquanto em torno dele a sociedade prefere ignorar sua situação até que chegue a hora de reprimir, a hora de PROIBIR?" Mas as palavras compassivas de Mitterrand mascaravam uma política fracassada, e 15 anos depois de seu diagnóstico, a falta de esperança das "vidas cinzentas" desses jovens dos guetos se tornou ainda mais profunda e mais dolorosa.
A resposta do governo Chirac à rebelião vem sendo a surdez. O comando das operações cabe ao excessivamente ambicioso e demagógico ministro do Interior, Nicolas Sarkozy, que está em campanha aberta para substituir Chirac em 2007 e só lançou mais gasolina verbal às chamas ao falar da juventude dos guetos nos termos mais insultuosos e racistas, e ao defender repressão severa.
Quando Sarkozy quis discursar perante a conferência dos bispos católicos franceses, em Paris, depois de dias de tumultos, os líderes religiosos não permitiram que ele falasse, e em lugar disso denunciaram "aqueles que pedem repressão e instilam o medo" em lugar de responder às causas econômicas, sociais e raciais dos tumultos. Foi uma reprimenda incomumente severa e dirigida diretamente a Sarkozy.
A esquerda, que esteve no poder por 14 dos últimos 24 anos, tem parcela considerável de responsabilidade por suas falhas no combate à pobreza, ao racismo e à exclusão. Mas os conservadores agravaram seriamente a situação. Sob a manchete "cortes de orçamento exasperam prefeitos dos subúrbios", a cobertura do jornal "Le Monde" quanto aos distúrbios informava que Chirac havia agravado os 30 anos de negligência ao reduzir ainda mais as verbas dos programas sociais: cortes de 60% nos últimos três anos aos subsídios a grupos de bairro que trabalham com os jovens e redução nos orçamentos de treinamento profissional, educação, combate ao analfabetismo e policiamento de bairro, que permite aos policiais conhecer melhor os garotos dos guetos e trabalhar com eles. (Depois dos primeiros tumultos, Sarkozy disse aos policiais de bairro da cidade que "seu trabalho não é jogar bola com esses meninos, é prendê-los".)
Os cortes de orçamento de programas sociais e o reforço da repressão são uma receita para violência ainda maior, mas uma pesquisa de opinião pública conduzida pelo canal público de TV France 2 mostra que 57% dos franceses apóiam a abordagem linha dura que Sarkozy propõe para enfrentar a rebelião.
O governo de Chirac -sem oposição dos socialistas- decidiu declarar estado de emergência. Advogados e juízes denunciaram a "desastrosa lógica de guerra" que invocar essa lei envolve. Mas a resposta do governo significa que aquilo a que os franceses se referem como a "fratura social" só vai se agravar.

O ensaísta americano Doug Ireland, colaborador da revista "The Nation", onde este artigo foi originalmente publicado, viveu na França por uma década e dirige o seu blog Direland (http://direland.typepad.com/direland).

Texto Anterior: França prolonga emergência por 3 meses
Próximo Texto: América Latina: Venezuela e México retiram embaixadores
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.