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Chove tiro na antiga Saddam City
ROBERT FISK
DO "INDEPENDENT", EM BAGDÁ
Todo o mundo se recorda de
onde estava no momento em que
Kennedy foi assassinado ou
quando os aviões atingiram as
torres gêmeas. E também vamos
nos recordar de onde estávamos
quando Saddam Hussein foi finalmente capturado. Para mim,
foram os disparos de armas de fogo que anunciaram a notícia. Eu
estava sentado no chão de concreto da casa de um clérigo xiita morto por um tanque americano.
Num primeiro momento foram
apenas algumas balas a esmo disparadas de longe, talvez numa festa de casamento. Alguém estava
esvaziando um pente inteiro de
munição em saraivadas de três
balas a cada dois segundos.
Falávamos sobre o luto da família por Sayed Abdulrazak Salman
Alami, atropelado por um tanque
americano nove dias antes. Ele era
um prelado xiita de 42 anos que
tinha sido torturado duas vezes
por fazer oposição a Saddam. Era
amado nas favelas de Sadr City
-ou Saddam City, como era conhecida no velho regime- porque negociara corajosamente
com a polícia de Saddam a libertação de homens condenados.
Ele salvara sua gente dos carrascos de Saddam. Então por que tivera de morrer agora? Houve
mais disparos, desta vez de mais
perto, e algumas granadas explodiram no céu, impelidas por foguetes. Andei até a porta, onde
uma brisa forte soprava na rua.
Agora os disparos de fuzis soavam tão perto que duas mulheres
e uma criança estavam correndo
para se proteger. O xeque, irmão
do clérigo morto, estava a meu lado, em suas vestes religiosas pretas e brancas. "A rádio está dizendo que Talabani [o líder curdo]
afirma que Saddam foi capturado", disse ele. Começaram a chover balas. "Entre em casa, entre",
gritou outro parente. Mas não podíamos deixar de assistir à primeira reação à captura de Saddam por parte das pessoas que foram esmagadas, torturadas e enterradas em valas comuns por esse homem capturado em Tikrit.
Sentamo-nos outra vez, e o professor de religião do xeque morto
queria falar da educação dele, em
Najaf. Vários dos presentes reivindicavam o fim da ocupação
americana -reivindicação que
certamente vamos ouvir outras
vezes nos próximos dias. Mas
ninguém mais estava ouvindo.
Um adolescente de nome Karim,
que eu desconfiava ser miliciano,
saiu da sala e voltou correndo alguns segundos mais tarde. Agora
a rádio estava dizendo que Paul
Bremer, o procônsul americano
em Bagdá, tinha dito a um integrante do chamado Conselho de
Governo Iraquiano que Saddam
estava nas mãos dos EUA.
Em toda a sala, pela primeira
vez desde a morte de Sayed Alami, as expressões de tristeza se
transformaram em sorrisos. Mesmo o irmão do clérigo morto me
tocou no ombro, com as sobrancelhas erguidas. Saímos à rua. Um
muezim, falando pelo alto-falante
de um minarete, pedia aos atiradores que parassem de disparar.
"Isso não é jeito de comemorar
-colocando em risco a vida de
inocentes", ele gritava. Mas de nada adiantava. As balas continuavam a chover, ouviam-se disparos
de pistolas e mais granadas explodindo. Carros se chocavam em
meio ao caos criado na rua.
Fizemos nossas despedidas.
Nunca antes vi tantos sorrisos numa família em luto. Pedi desculpas por desrespeitar todas as regras da cortesia tradicional num
velório, dizendo que o xeque
morto era uma pessoa mais importante do que Saddam. Todos
compreenderam. "Boa sorte, cuide-se", disseram e saíram à rua
comigo, debaixo dos tiros.
Tradução de Clara Allain
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