São Paulo, domingo, 16 de abril de 2006

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ARTIGO

O primeiro ano do papado de Bento 16

FERNANDO ALTEMEYER JÚNIOR
ESPECIAL PARA A FOLHA

Hoje o papa faz 79 anos de vida. Nascido em Marktl am Inn, em 1927 (em um Sábado Santo), é eleito em um dos mais rápidos conclaves da história (quatro votações em 22 horas) e apresentado ao mundo às 18h40 do dia 19 de abril do ano passado. O 265º sucessor de Pedro assumiu o nome de Bento 16. Isto representa sua prioridade por recristianizar a Europa. Os temas nevrálgicos serão o secularismo e o relativismo.
Este filho de agricultor e artesã da Baixa Baviera ocupa há um ano a função de bispo de Roma e responsável primeiro pela unidade eclesial. O homem que nascera em ambiente mozarteano, tornou-se intelectual de fino trato e, por esta nomeação, emergirá como guia espiritual de um bilhão de fiéis em todo o planeta.
Sua formação intelectual passa por Santo Agostinho e São Boaventura, o que explica sua preocupação com a verdade, em chave platônica e neoplatônica.
Seu lema como bispo é: "Colaborador da verdade"; e vale lembrar o que o então bispo Ratzinger dissera desta sua escolha. "Parecia-me, por um lado, encontrar nele a ligação entre a tarefa anterior de professor e a minha nova missão; o que estava em jogo, e continua a estar, embora com modalidades diferentes , é seguir a verdade, estar a seu serviço. E, por outro, escolhi este lema porque, no mundo atual, omite-se quase totalmente o tema da verdade, parecendo algo demasiado grande para o homem; e, todavia, tudo se desmorona se falta a verdade".
Desde seus primeiros anos como professor confirma uma visão tradicional oposta ao marxismo e ao niilismo sartriano e nietzscheano, fortemente presentes no mundo estudantil dos anos 1960. Isto não o impede, no entanto, de propor a missa na língua local das comunidades em lugar do latim e sobretudo em pensar a Igreja como grande mistério de comunhão e sacramento vivo de libertação face a visão hierárquica e fixista vivida até o Papa Pio 12.
A ênfase profissional em sua vida será o ato de lecionar e o de ser perito teológico. Isto talvez explique sua timidez e seus gestos singelos se comparados à grandiloqüência de seu antecessor, João Paulo 2º, verdadeiro homem do teatro e taumaturgo de multidões.
Entretanto, o apreciador de Mozart é hoje conhecido por sua imensa capacidade e lucidez para tratar, com poesia, de grandes temas bíblicos e teológicos. Esta sua sensibilidade e clareza lógica, hoje como papa, contrastam com a fama de homem autoritário e inflexível, construída enquanto prefeito da Doutrina da Fé nos vinte e três anos de mandato, quando enquadrou cerca de duzentos teólogos católicos em todo o mundo.
Realiza neste seu primeiro ano viagem até Bari, na Itália, em 29 de maio de 2005, dando ênfase ao ecumenismo, o que foi grata surpresa face ao duríssimo texto por ele anteriormente publicado, chamado Dominus Iesus, que praticamente sepultara o diálogo entre os cristãos.
O novo papa alemão tem se mostrado aberto e amigo de todas as confissões com palavras de carinho e amizade explícitas aos judeus e muçulmanos além de gestos de proximidade e respeito face aos cristãos de outras denominações. Como exemplo, podemos citar sua decisão de abandonar o título de patriarca do Ocidente para favorecer a comunhão. Gesto simples, mas corajoso.
Faz uma viagem internacional retornando a sua Heimat entre 18 e 21 de agosto de 2005, para celebrar a 20ª Jornada Mundial da Juventude. Aprova o Compêndio do Catecismo em 28 de junho e publica a primeira Encíclica de seu governo, Deus caritas est, em 25 de dezembro de 2005. Em 31 de agosto de 2005, aprova documento em que afirma que a igreja "não poderá admitir no seminário e nas ordens sagradas aqueles que praticam a homossexualidade, apresentam tendências homossexuais enraizadas ou apóiam o que se chama a "cultura gay'".
Em 24 de março de 2006, convoca seu primeiro consistório. Nomeia quinze cardeais, entre os quais o arcebispo de Hong Kong, Joseph Zen Ze Kiun. Isto se situa na estratégia central de estabelecer laços com a China e eventualmente em preparar um futuro papa oriental para sucedê-lo.
O que chamou a atenção negativamente foi o fato de não nomear nenhum brasileiro, pois toda a comunidade católica internacional e nacional esperava ansiosa que dom Luciano Pedro Mendes de Almeida e dom José Ivo Lorscheiter fossem reconhecidos pelo tremendo trabalho prestado por ambos em favor da igreja mundial e do diálogo entre as religiões no Brasil e no mundo. Os brasileiros merecem que estes dois evangelizadores sejam reconhecidos pelo tamanho de sua envergadura pastoral. Aqui houve uma omissão que até agora nos permanece inexplicável.
Além desta questão particular, os católicos latino-americanos aguardam que dois bispos assassinados em nosso continente, dom Enrique Angelelli, pela ditadura argentina, e dom Oscar Arnulfo Romero y Gadamez, pelas forças de direita organizadas pelos norte-americanos em El Salvador, sejam canonizados com a máxima urgência.
A tradição religiosa da metade dos católicos do mundo que aqui vivem, aguarda este ingente e necessário reconhecimento canônico. Até porque a memória de ambos já fortalece e faz surgir igrejas em todas as paragens. Pois como lembra Santo Irineu, "sangue dos mártires é semente de igrejas".
Neste ponto central, a igreja e seus bispos não podem sofrer de amnésia, para não ser desacreditada e para poder dar testemunho fiel do Cristo em nossos dias.
É verdade que teremos, mui provavelmente, em maio de 2007, na vinda do papa ao Brasil (em Aparecida), a canonização de Frei Antonio Galvão, filho querido do Vale do Paraíba, o que o tornará, portanto, o primeiro brasileiro elevado aos altares em 500 anos de história.
Promete-se para breve também a reavaliação histórico-crítica da figura e dos eventos conflituosos envolvendo o padre Cícero Romão Batista em Juazeiro, com a sua provável beatificação, o que mudaria totalmente o universo religioso no Brasil, especialmente no Vale do Cariri, no sertão pernambucano e em todo agreste nordestino.
O papa Bento 16 poderá superar um século de incompreensões e preconceitos contra a fé verdadeira de nosso povo sertanejo.
Neste primeiro ano, suas propostas mantêm o cunho conservador de seus escritos mais recentes, mantendo a sintonia com o pensamento moral de João Paulo; restringe as pesquisas com células-tronco e reforça a visão naturalista sobre reprodução humana.
A inovação ficou por conta da perspectiva com que o papa lê a sexualidade ligada ao erotismo e ao desejo do amor humano, como parábola do amor divino.
Mas isto não permite ao papa qualquer condescendência com o casamento gay e com qualquer mudança de postura no uso de preservativos e de métodos anticoncepcionais.
O atual papa é contrario à ordenação de mulheres e é fiel defensor das novas comunidades cristãs, tais como a Renovação Carismática, os Focolares, a Comunhão e Libertação e o Caminho Catecumenal, além de apoiar firmemente a organização esotérica conhecida como Opus Dei.
Todos estão agradavelmente surpresos com o pontificado de Bento 16, pois esperava-se pelo recrudescimento do inverno e temos recebido suave brisa de primavera. Oxalá continue.


Fernando Altemeyer Júnior, 49, teólogo católico, é mestre em teologia dogmática pela Universidade de Louvain (Bélgica) e ouvidor da PUC-SP.


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