São Paulo, domingo, 16 de abril de 2006

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ARTIGO

Um país dividido ao meio

TONY BARBER
DO "FINANCIAL TIMES"

Em "O Dia da Coruja", romance sobre a Máfia que Leonardo Sciascia (1921-1989) publicou em 1961, um personagem chamado Brescianelli discute a "linha das palmeiras", na geografia italiana, ou seja, a linha abaixo da qual as palmeiras podem ser plantadas. No passado, ele diz, ela distinguia a Sicília e o sul da Itália do norte, mas estava avançando península acima, e "já ultrapassou Roma".
Sciascia, siciliano, usou essa metáfora para descrever como a sociedade na Sicília e no sul da Itália diferia do norte. A imagem servia também para indicar a crescente ameaça de corrupção e violência controladas pela Máfia avançando Itália acima.
Em uma semana na qual o resultado de eleição mais apertado na história moderna do país expôs profundas fraturas na política, sociedade e cultura italianas, e em que a polícia deteve Bernardo Provenzano -"o chefe dos chefes" da Cosa Nostra, a Máfia siciliana-, a "linha das palmeiras" de Sciascia é uma dentre muitas divisões que merecem atenção.
A cisão mais evidente é a de lealdades políticas. Como define Francesco Pionati, que foi eleito senador pelo Partido Democrata Cristão, de centro-direita, a eleição "retratou a realidade de um país dividido ao meio".
Na votação para eleger os integrantes da Câmara baixa do Parlamento italiano, 49,8% dos eleitores apoiaram a aliança de centro-esquerda liderada por Romano Prodi, antigo presidente da Comissão Européia, e 49,7% votaram na coalizão de centro-direita liderada pelo primeiro-ministro Silvio Berlusconi. A diferença entre as duas alianças foi de apenas 25 mil votos, em um universo de quase 40 milhões de eleitores.
A votação para o Senado também apresentou resultado apertado. As forças de Berlusconi ficaram com 50,2% dos votos e as de Prodi com 48,9% (ainda que estas últimas tenham conquistado dois assentos a mais).
As razões para essa divisão tão parelha são múltiplas, mas a origem pode ser encontrada no clima ideológico polarizado que prevalecia na Itália nos anos 40 e 50. Depois da queda, em 1943, do ditador fascista Benito Mussolini, que governou o país por 21 anos, surgiu o que representava para todos os efeitos práticos uma guerra civil entre seus partidários, apoiados pelos nazistas, e a resistência liderada pelos comunistas.
O fascismo foi rejeitado pela maioria dos italianos, depois de 1945, mas não desapareceu completamente de cena. A burocracia do Estado não teve expurgados todos os seus integrantes fascistas, e algumas leis da era fascista continuaram em vigor. Um partido neofascista manteve os estandartes do movimento visíveis, e se transformou na Aliança Nacional, o segundo maior partido na coalizão governista de Silvio Berlusconi. O líder da agremiação é Gianfranco Fini, ministro do Exterior italiano, cujas opiniões políticas são muito mais esclarecidas do que as de sua base eleitoral.
Em parte devido a essa continuidade com a era de Mussolini e também pela sua proeminência nos movimentos de resistência durante a guerra, bem como às promessas de reformas sociais há muito tempo vistas como necessárias, os comunistas italianos atraíram imenso apoio eleitoral depois de 1945. Eles chegaram até a considerar equivocadamente que seriam capazes de vencer as eleições de 1948, decisivas para o futuro status da Itália como nação democrática e próspera, e membro pleno da Organização para o Tratado do Atlântico Norte.
Mas havia um problema. Para a maioria dos italianos, o Partido Comunista havia sido por tempo demais uma organização stalinista, subserviente a Moscou. Apesar de isolados como parte de uma subcultura política bastante peculiar, os comunistas continuaram a ser o maior partido da esquerda italiana até 1992.
Isso encorajava os italianos mais conservadores e católicos a acreditar que não poderiam jamais votar na esquerda. Como demonstraram os resultados da eleição desta semana, muitos desses italianos continuam a ter uma reação alérgica aos "comunistas", na forma dos partidos de esquerda linha dura dos quais Prodi terá de depender para manter sua minúscula maioria no Senado.
Os italianos de esquerda, igualmente, preferem doença a votar em Berlusconi. Sua espantosa e errônea declaração de que "Mussolini nunca matou ninguém", e simplesmente enviava seus oponentes para o exílio em campos semelhantes a acampamentos de férias, fez com que revivessem todas as suspeitas esquerdistas de que alguns elementos da direita italiana têm interesse em ocultar o legado do fascismo.
Em termos de política econômica, pouco separa a esquerda e a direita na Itália. Partidos de ambos os lados ostentam instintos corporativistas, e adoram usar a burocracia do Estado e as empresas estatais como instrumentos de favorecimento político.
Mesmo assim, a cisão entre norte e sul pode ser explicada parcialmente em termos econômicos.
O choque para a esquerda, nos resultados eleitorais desta semana, foi a extensão de sua derrota no norte, especialmente nas quatro regiões de Friuli-Veneza, Lombardia, Piemonte e Vêneto. Trata-se das regiões mais ricas e produtivas do país, ostentando desemprego praticamente zero. Nelas, empresários e proprietários de pequenas e médias empresas não têm interesse algum pelas práticas supostamente letárgicas e corruptas que prevalecem em Roma e no sul.
No sul da Itália, apesar da derrota na região da Apúlia e na Sicília, a esquerda terminou por cima nas urnas. O sul nem de longe é o inferno dominado pela Máfia ou o deserto empresarial que os italianos setentrionais gostam de imaginar. Mas o nível de desemprego, que atinge os 15% a 20% da força de trabalho, é quatro ou cinco vezes superior ao do norte. Desde a unificação italiana, em 1861, o sul dependeu mais do que o norte de investimentos estatais e de esquemas previdenciários.
Isso sugere uma terceira divisão na vida do país: a cisão social entre os jovens e os mais velhos. O índice de desemprego entre os jovens italianos é três vezes superior à média nacional de 7,7% e, nos últimos 10 anos, ocasionalmente superou a marca dos 40%, no sul.
Como na França, os italianos mais jovens encontram dificuldades para ingressar no mercado de trabalho porque os trabalhadores mais velhos são protegidos por leis que podem garantir-lhes emprego perpétuo. Muitos estudantes italianos abandonam a universidade antes de se formarem, ou passam sete anos ocupados em cursos de graduação que pouco fazem para prepará-los para o mercado de trabalho.
Esse sistema passou por considerável reestruturação nos últimos anos, com a expansão dos contratos de trabalho temporários ou de tempo parcial. No entanto, uma das prioridades de Prodi é aumentar os impostos trabalhistas sobre os empregos temporários, para conter o uso desse tipo de contrato.
No extremo oposto da escala temos o exército cada vez maior de aposentados italianos, cuja influência como bloco eleitoral não pára de crescer e que exigem proteção cada vez maior às suas aposentadorias.
Ao mesmo tempo, o número de jovens vem decrescendo, sua influência está se reduzindo e sua disposição de pagar pelos benefícios dos mais velhos, bem como pelos seus próprios futuros benefícios, é cada vez menor. Uma recente alta no índice de natalidade italiano, para 1,3 criança por mulher, não reverterá essa tendência.
Outro fator que vem mudando o perfil demográfico da Itália e criando novas divisões sociais é a imigração. Já existem cerca de 1,1 milhão de muçulmanos em meio aos 58 milhões de habitantes de maioria esmagadoramente católica, e as cidades italianas estão repletas de imigrantes da África, da Europa Oriental, da América Latina, das Filipinas e da China. Imigrantes de fora da União Européia não têm direito a voto, e Fini causou furor entre seus aliados de centro-direita com uma proposta de conceder o direito de voto a eles em pleitos locais.
As divisões políticas, sociais e culturais da Itália -por exemplo a que separa os católicos praticantes dos laicos radicais, e afeta profundamente a coalizão de Prodi-, deveriam se ter tornado uma simples memória histórica sob o sistema político que emergiu no começo dos anos 90, dentre os destroços da chamada "Primeira República" italiana.
O sistema, libertado do jugo dos democratas cristãos e comunistas cujos partidos tradicionais entraram em colapso, e ostentando movimentos de grande visibilidade como o Força Italia, de Berlusconi, e a coalizão Oliveira, de Prodi, recebeu a designação extra-oficial e otimista de "segunda república".
Mas, com o impasse que as eleições geraram, talvez seja essa "segunda república", com fracassos políticos e econômicos, que precisa ser sepultada.


Tradução de Paulo Migliacci


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