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ARTIGO
Um país dividido ao meio
TONY BARBER
DO "FINANCIAL TIMES"
Em "O Dia da Coruja", romance
sobre a Máfia que Leonardo
Sciascia (1921-1989) publicou em
1961, um personagem chamado
Brescianelli discute a "linha das
palmeiras", na geografia italiana,
ou seja, a linha abaixo da qual as
palmeiras podem ser plantadas.
No passado, ele diz, ela distinguia
a Sicília e o sul da Itália do norte,
mas estava avançando península
acima, e "já ultrapassou Roma".
Sciascia, siciliano, usou essa metáfora para descrever como a sociedade na Sicília e no sul da Itália
diferia do norte. A imagem servia
também para indicar a crescente
ameaça de corrupção e violência
controladas pela Máfia avançando Itália acima.
Em uma semana na qual o resultado de eleição mais apertado
na história moderna do país expôs profundas fraturas na política, sociedade e cultura italianas, e
em que a polícia deteve Bernardo
Provenzano -"o chefe dos chefes" da Cosa Nostra, a Máfia siciliana-, a "linha das palmeiras"
de Sciascia é uma dentre muitas
divisões que merecem atenção.
A cisão mais evidente é a de lealdades políticas. Como define
Francesco Pionati, que foi eleito
senador pelo Partido Democrata
Cristão, de centro-direita, a eleição "retratou a realidade de um
país dividido ao meio".
Na votação para eleger os integrantes da Câmara baixa do Parlamento italiano, 49,8% dos eleitores apoiaram a aliança de centro-esquerda liderada por Romano Prodi, antigo presidente da
Comissão Européia, e 49,7% votaram na coalizão de centro-direita
liderada pelo primeiro-ministro
Silvio Berlusconi. A diferença entre as duas alianças foi de apenas
25 mil votos, em um universo de
quase 40 milhões de eleitores.
A votação para o Senado também apresentou resultado apertado. As forças de Berlusconi ficaram com 50,2% dos votos e as de
Prodi com 48,9% (ainda que estas
últimas tenham conquistado dois
assentos a mais).
As razões para essa divisão tão
parelha são múltiplas, mas a origem pode ser encontrada no clima ideológico polarizado que
prevalecia na Itália nos anos 40 e
50. Depois da queda, em 1943, do
ditador fascista Benito Mussolini,
que governou o país por 21 anos,
surgiu o que representava para todos os efeitos práticos uma guerra
civil entre seus partidários, apoiados pelos nazistas, e a resistência
liderada pelos comunistas.
O fascismo foi rejeitado pela
maioria dos italianos, depois de
1945, mas não desapareceu completamente de cena. A burocracia
do Estado não teve expurgados
todos os seus integrantes fascistas, e algumas leis da era fascista
continuaram em vigor. Um partido neofascista manteve os estandartes do movimento visíveis, e se
transformou na Aliança Nacional,
o segundo maior partido na coalizão governista de Silvio Berlusconi. O líder da agremiação é Gianfranco Fini, ministro do Exterior
italiano, cujas opiniões políticas
são muito mais esclarecidas do
que as de sua base eleitoral.
Em parte devido a essa continuidade com a era de Mussolini e
também pela sua proeminência
nos movimentos de resistência
durante a guerra, bem como às
promessas de reformas sociais há
muito tempo vistas como necessárias, os comunistas italianos
atraíram imenso apoio eleitoral
depois de 1945. Eles chegaram até
a considerar equivocadamente
que seriam capazes de vencer as
eleições de 1948, decisivas para o
futuro status da Itália como nação
democrática e próspera, e membro pleno da Organização para o
Tratado do Atlântico Norte.
Mas havia um problema. Para a
maioria dos italianos, o Partido
Comunista havia sido por tempo
demais uma organização stalinista, subserviente a Moscou. Apesar
de isolados como parte de uma
subcultura política bastante peculiar, os comunistas continuaram a
ser o maior partido da esquerda
italiana até 1992.
Isso encorajava os italianos
mais conservadores e católicos a
acreditar que não poderiam jamais votar na esquerda. Como
demonstraram os resultados da
eleição desta semana, muitos desses italianos continuam a ter uma
reação alérgica aos "comunistas",
na forma dos partidos de esquerda linha dura dos quais Prodi terá
de depender para manter sua minúscula maioria no Senado.
Os italianos de esquerda, igualmente, preferem doença a votar
em Berlusconi. Sua espantosa e
errônea declaração de que "Mussolini nunca matou ninguém", e
simplesmente enviava seus oponentes para o exílio em campos
semelhantes a acampamentos de
férias, fez com que revivessem todas as suspeitas esquerdistas de
que alguns elementos da direita
italiana têm interesse em ocultar o
legado do fascismo.
Em termos de política econômica, pouco separa a esquerda e a direita na Itália. Partidos de ambos
os lados ostentam instintos corporativistas, e adoram usar a burocracia do Estado e as empresas
estatais como instrumentos de favorecimento político.
Mesmo assim, a cisão entre norte e sul pode ser explicada parcialmente em termos econômicos.
O choque para a esquerda, nos
resultados eleitorais desta semana, foi a extensão de sua derrota
no norte, especialmente nas quatro regiões de Friuli-Veneza,
Lombardia, Piemonte e Vêneto.
Trata-se das regiões mais ricas e
produtivas do país, ostentando
desemprego praticamente zero.
Nelas, empresários e proprietários de pequenas e médias empresas não têm interesse algum pelas
práticas supostamente letárgicas
e corruptas que prevalecem em
Roma e no sul.
No sul da Itália, apesar da derrota na região da Apúlia e na Sicília,
a esquerda terminou por cima nas
urnas. O sul nem de longe é o inferno dominado pela Máfia ou o
deserto empresarial que os italianos setentrionais gostam de imaginar. Mas o nível de desemprego,
que atinge os 15% a 20% da força
de trabalho, é quatro ou cinco vezes superior ao do norte. Desde a
unificação italiana, em 1861, o sul
dependeu mais do que o norte de
investimentos estatais e de esquemas previdenciários.
Isso sugere uma terceira divisão
na vida do país: a cisão social entre os jovens e os mais velhos. O
índice de desemprego entre os jovens italianos é três vezes superior
à média nacional de 7,7% e, nos
últimos 10 anos, ocasionalmente
superou a marca dos 40%, no sul.
Como na França, os italianos
mais jovens encontram dificuldades para ingressar no mercado de
trabalho porque os trabalhadores
mais velhos são protegidos por
leis que podem garantir-lhes emprego perpétuo. Muitos estudantes italianos abandonam a universidade antes de se formarem, ou
passam sete anos ocupados em
cursos de graduação que pouco
fazem para prepará-los para o
mercado de trabalho.
Esse sistema passou por considerável reestruturação nos últimos anos, com a expansão dos
contratos de trabalho temporários ou de tempo parcial. No entanto, uma das prioridades de
Prodi é aumentar os impostos trabalhistas sobre os empregos temporários, para conter o uso desse
tipo de contrato.
No extremo oposto da escala temos o exército cada vez maior de
aposentados italianos, cuja influência como bloco eleitoral não
pára de crescer e que exigem proteção cada vez maior às suas aposentadorias.
Ao mesmo tempo, o número de
jovens vem decrescendo, sua influência está se reduzindo e sua
disposição de pagar pelos benefícios dos mais velhos, bem como
pelos seus próprios futuros benefícios, é cada vez menor. Uma recente alta no índice de natalidade
italiano, para 1,3 criança por mulher, não reverterá essa tendência.
Outro fator que vem mudando
o perfil demográfico da Itália e
criando novas divisões sociais é a
imigração. Já existem cerca de 1,1
milhão de muçulmanos em meio
aos 58 milhões de habitantes de
maioria esmagadoramente católica, e as cidades italianas estão repletas de imigrantes da África, da
Europa Oriental, da América Latina, das Filipinas e da China. Imigrantes de fora da União Européia
não têm direito a voto, e Fini causou furor entre seus aliados de
centro-direita com uma proposta
de conceder o direito de voto a
eles em pleitos locais.
As divisões políticas, sociais e
culturais da Itália -por exemplo
a que separa os católicos praticantes dos laicos radicais, e afeta profundamente a coalizão de Prodi-, deveriam se ter tornado
uma simples memória histórica
sob o sistema político que emergiu no começo dos anos 90, dentre os destroços da chamada "Primeira República" italiana.
O sistema, libertado do jugo dos
democratas cristãos e comunistas
cujos partidos tradicionais entraram em colapso, e ostentando
movimentos de grande visibilidade como o Força Italia, de Berlusconi, e a coalizão Oliveira, de Prodi, recebeu a designação extra-oficial e otimista de "segunda república".
Mas, com o impasse que as eleições geraram, talvez seja essa "segunda república", com fracassos
políticos e econômicos, que precisa ser sepultada.
Tradução de Paulo Migliacci
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