São Paulo, quarta-feira, 16 de junho de 2004

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Para vaticanista, igreja não faz revisionismo

DA REPORTAGEM LOCAL

Ao reiterar a crítica já feita em 2000 à Inquisição, João Paulo 2º "evocou de modo penitente" um dos erros do passado da igreja e, ao mesmo tempo, endereçou uma crítica ao sectarismo que orienta os comportamentos de caráter inquisitorial do mundo moderno.
É o que diz Giancarlo Zizola, 68, vaticanista e autor da biografia "A Utopia de João 23" (1973) e de "O Sucessor" (1996), sobre a já aberta sucessão do atual pontífice.
Eis os principais trechos da entrevista de Zizola à Folha.
(JOÃO BATISTA NATALI)
 

Folha - João 23 e o Concílio Vaticano deram uma interpretação mais aberta, menos dogmática, a respeito da igreja. Já estava então embutida uma condenação da Inquisição?
Giancarlo Zizola -
Tanto para João 23 quanto para João Paulo 2º a Inquisição não é apenas uma nódoa na história. Ela é também um estado de espírito. A Inquisição é uma atitude cultural de autoritarismo, segundo a qual "eu detenho a verdade" e por isso obrigo pela força que você esteja de acordo com as minhas idéias. Caso contrário, você será excluído da igreja.

Folha - Seria o caso das guerras e do terrorismo religioso?
Zizola -
Por certo. As guerras religiosas e o terrorismo contra os dissidentes foram próprios ao passado da igreja. Pensar criticamente a Inquisição não significa apenas referir-se a ela como história. É uma atitude permanente diante daquilo que também ocorre na atualidade.

Folha - A Polônia foi o último país a abolir a Inquisição. Se o papa fosse italiano esse tema seria tão presente no seu pontificado?
Zizola -
Não creio que seja o caso. O primeiro papa que se posicionou contra a Inquisição foi Leão 13, no século 19. Era um italiano, tanto quanto João 23. Não creio que a atitude espiritual do pontífice possa ser interpretada pelas divisões geográficas da Europa. É algo cultural.
O fato de ser polonês talvez traga ao papa uma sensibilidade maior quanto às inquisições recentes, como o nazismo e os campos de concentração.

Folha - Mas essa crítica não foi feita pelo Concílio Vaticano 2º?
Zizola -
Há um autoritarismo laico que o nazismo e o comunismo representaram. São coisas que João Paulo 2º conheceu de perto em seu país.
O mundo moderno ainda alimenta comportamentos inquisitoriais, e o papa sabe disso. O concilio consagrou o princípio da liberdade religiosa. Por esse princípio, a verdade é algo na qual ninguém é forçado a acreditar. Ela é alcançada num processo de escolha e de liberdade.

Folha - O papa minimizou a Inquisição? Por que se penitenciar novamente por causa dela?
Zizola -
Ele não a minimizou, e é uma diretriz de seu pontificado criticar e pôr um fim aos erros cometidos pela igreja ao longo dos séculos.
No ano 2000 ele confirmou esse comportamento durante cerimônia pública na basílica de São Pedro. Referiu-se na época à violência cometida em nome de valores religiosos e a outros crimes que a igreja traz em sua história.

Folha - Por que voltar ao assunto?
Zizola -
Ele procurou, a meu ver, evocar de modo penitente a memória de erros do passado. Não se trata de uma memória revisionista da história eclesiástica. Não há nisso uma imensa novidade.

Folha - Se o papa não fosse visto como um conservador, será que ele precisaria retornar ao tema?
Zizola -
A visão de que existe uma igreja progressista e outra conservadora acaba por prejudicar o entendimento sobre o conteúdo histórico e espiritual dos pontificados.
João Paulo 2º procurou preservar as tradições do catolicismo e da vida espiritual familiar. Mas, por outro lado, ele também dá à religião uma interpretação inovadora, como a relação da igreja com sua memória.


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