São Paulo, sábado, 16 de setembro de 2006

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análise

Texto provoca interpretações conflitantes

FÁBIO CHIOSSI
DA REDAÇÃO

O tema central do discurso de Bento 16, que provocou revolta em vários setores da comunidade muçulmana internacional, não era a relação entre o islã e o cristianismo. No entanto, o pronunciamento deu margem a interpretações conflitantes das palavras de Ratzinger por parte de especialistas das duas correntes.
O assunto principal que o papa trouxe à tona enquanto falava à platéia da Universidade de Regensburg -e que acabou ficando em segundo plano- foi a relação entre fé e razão.
E o cerne da argumentação do papa foi a afirmação de que "não agir racionalmente é contra a natureza de Deus". Isso porque, conforme o sumo pontífice, a razão humana é manifestação divina, ou seja, Deus está presente em cada um dos homens também por meio da razão.

Fé e violência
A partir daí ele desenvolve um raciocínio que culmina no reconhecimento de que o pensamento racional que rejeita a religião como fonte de princípios éticos é limitado. Até chegar a essa conclusão, ele passa por episódios da história da teologia cristã e faz referências a Kant e Sócrates.
O problema com os clérigos muçulmanos -e agora com políticos de países islâmicos- está no exemplo de que Bento 16 se utilizou para dar início ao seu discurso.
O papa citou trecho de um diálogo que ocorreu ("talvez", como ele mesmo frisa) no final do século 14, entre o imperador bizantino Manuel 2º Paleólogo e um "persa instruído" sobre "a cristandade, o islã e a verdade de ambos". A certa altura, o imperador pede ao seu interlocutor que lhe mostre "o que Maomé trouxe de novo, e você só encontrará coisas más e desumanas, como sua ordem de espalhar pela espada a fé que pregava".
O exemplo é usado pelo papa para dizer que o imperador percebia que atos irracionais -no caso, a guerra, a violência- são contrários a Deus.
"Não dá pra ter religião com violência; era isso que o papa queria dizer", explica o teólogo Fernando Altemeyer Jr., ouvidor e professor da PUC-SP.
Embora o papa tenha afirmado que a pergunta do imperador ao persa foi "brusca", não a condenou. E clérigos muçulmanos viram no uso desse exemplo um sinal de que o papa não entende claramente o conceito de "jihad" (que os muçulmanos traduzem como "esforço" e que é associada no Ocidente à guerra santa), ligando o islã à violência.

Razão no islã
E viram também, num nível mais sutil, a indicação de que o islã mantém uma visão da racionalidade como algo não necessariamente ligado à religião -como o próprio papa disse, "no ensinamento muçulmano, Deus é absolutamente transcendente" (o que significa que pode ser um esforço vão tentar chegar a Deus por meio da razão).
"É lamentável; o papa não sabe o mínimo necessário da religião islâmica", diz o xeque Jihad Hassan, vice-presidente para a América Latina da Assembléia Mundial da Juventude Islâmica. "A fé é racional também para o islã", completa o xeque Hassan. Do contrário, "como explicar grandes descobertas científicas por parte dos muçulmanos, que seguiam o Alcorão?".
Segundo Altemeyer, porém, a intenção de Bento 16 não foi criticar o islã: "Ele não está criticando o islã"; o que ele afirma é que "não é possível pensar Deus ligado a sangue".
Já o xeque Hassan concorda que "a condenação à violência é imperativa, o problema ocorre quando, ao condená-la, você a liga a um grupo específico. É uma forma de criar um preconceito".


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