São Paulo, domingo, 16 de novembro de 2008

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Turquia tenta rediscutir "pai" da nação

Mustafá Kemal Ataturk, que modernizou país no começo do século 20, é deificado, mas traços humanos começam a surgir

Em novo documentário que retrata fraquezas do "pai dos turcos", história oficial é revista, e temas como o islã e minoria curda voltam à pauta


SABRINA TAVERNISE
DO "NEW YORK TIMES"

Após quase um século aparentando seriedade, Mustafá Kemal Ataturk, o fundador da Turquia moderna, começou a sorrir. Ataturk -um estadista herói de guerra que defendeu a Turquia durante a divisão do Império Otomano- é objeto do que talvez seja o mais longo culto à personalidade do mundo.
O seu retrato está em cada loja de chá, escritório de governo e sala de aula. Insultar sua memória é um crime. E, em todo 10 de novembro, a Turquia faz um minuto de silêncio para lembrar a sua morte, em 1938.
Mas a sisuda versão oficial pode estar se flexibilizando. Em outubro, estreou na Turquia um documentário que aborda o lado humano de Ataturk. Pode não parecer muito, mas em um país onde a história oficial é mantida a sete chaves, o filme "Mustafá" é uma tentativa corajosa.
O filme não é um esforço para denegrir o líder. É um retrato em boa medida simpático. Mas só o fato de o seu diretor, Can Dundar, mostrá-lo menos como uma estátua de bronze e mais como um homem com um péssimo hábito de beber que por vezes entediava-se diz bastante sobre o quão longe a Turquia chegou nos últimos anos.
Fundada em 1923, a Turquia moderna nos seus primeiros anos era monocromática, com suas autoridades forçando um país de diferenças a criar uma identidade nacional. Mas, à medida que a prosperidade e a democracia fortaleceram-se, esforços para reavaliar o passado foram feitos, trazendo algumas das diferenças étnicas e religiosas de volta ao foco.
Ataturk, cujo nome significa "pai dos turcos", foi uma das figuras mais importantes do século 20. Mas sua história não é tão conhecida no Ocidente, em parte porque o status de Deus na Turquia a tornou politicamente espinhosa para contar.
"A Turquia nunca ia querer ver o seu pai fundador, o qual vê como uma pessoa sagrada, sendo retratado como uma pessoa com fraquezas humanas", escreveu o diário "Turkish Daily News", de língua inglesa, que relatou esforços vãos de Antonio Banderas, Kevin Costner e Yul Brynner para interpretá-lo.

Identidade nacional
Essa característica está na origem de muitos dos problemas do país. A Turquia tem uma enorme capacidade de negação, o que inclui o genocídio de armênios no começo do século 20 e uma grande minoria curda cuja existência o Estado só agora começa a reconhecer.
"Ataturk é usado como escudo por aqueles que interrompem o debate sobre muitas das deficiências do país", escreveu Ahmet Altan, um dos mais importantes intelectuais do país e colunista do diário liberal "Taraf". "Eles atribuem um status de Deus a Ataturk, e então escondem-se atrás dele."
Dundar baseou-se em uma longa seleção de diários e cartas de Ataturk que estiveram fechados por décadas em arquivos militares. O homem que emerge é ainda mais radical nas suas crenças do que aquele que os turcos conhecem, diz ele.
Ataturk estava determinado, por exemplo, a subordinar o islã e a forçar os turcos a aparentar e a se comportar como ocidentais. Dundar disse que só pôde usar uma pequena fração do material a que teve acesso que revelava algo do que Ataturk pensava sobre o islã. O resto era muito explosivo, disse.
Houve algumas divergências profundas em relação à história oficial, embora o filme se aproxime dela. Em uma cena, Ataturk diz crer que as áreas habitadas predominantemente por curdos deveriam ter status especial. O tema é extremamente controverso no país, que teme a secessão do sudeste curdo.
O filme estreou em 29 de outubro, Dia da República, a data nacional do país, e está em cartaz em mais de 200 salas. Dundar, ciente da delicadeza do tema, apesar de seu fluente inglês preferiu dar a entrevista em turco, para a máxima precisão.


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