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Turquia tenta rediscutir "pai" da nação
Mustafá Kemal Ataturk, que modernizou país no começo do século 20, é deificado, mas traços humanos começam a surgir
Em novo documentário que retrata fraquezas do "pai dos turcos", história oficial é revista, e temas como o islã e minoria curda voltam à pauta
SABRINA TAVERNISE
DO "NEW YORK TIMES"
Após quase um século aparentando seriedade, Mustafá
Kemal Ataturk, o fundador da
Turquia moderna, começou a
sorrir. Ataturk -um estadista
herói de guerra que defendeu a
Turquia durante a divisão do
Império Otomano- é objeto do
que talvez seja o mais longo culto à personalidade do mundo.
O seu retrato está em cada loja de chá, escritório de governo
e sala de aula. Insultar sua memória é um crime. E, em todo
10 de novembro, a Turquia faz
um minuto de silêncio para
lembrar a sua morte, em 1938.
Mas a sisuda versão oficial
pode estar se flexibilizando.
Em outubro, estreou na Turquia um documentário que
aborda o lado humano de Ataturk. Pode não parecer muito,
mas em um país onde a história
oficial é mantida a sete chaves,
o filme "Mustafá" é uma tentativa corajosa.
O filme não é um esforço para denegrir o líder. É um retrato
em boa medida simpático. Mas
só o fato de o seu diretor, Can
Dundar, mostrá-lo menos como uma estátua de bronze e
mais como um homem com um
péssimo hábito de beber que
por vezes entediava-se diz bastante sobre o quão longe a Turquia chegou nos últimos anos.
Fundada em 1923, a Turquia
moderna nos seus primeiros
anos era monocromática, com
suas autoridades forçando um
país de diferenças a criar uma
identidade nacional. Mas, à
medida que a prosperidade e a
democracia fortaleceram-se,
esforços para reavaliar o passado foram feitos, trazendo algumas das diferenças étnicas e religiosas de volta ao foco.
Ataturk, cujo nome significa
"pai dos turcos", foi uma das figuras mais importantes do século 20. Mas sua história não é
tão conhecida no Ocidente, em
parte porque o status de Deus
na Turquia a tornou politicamente espinhosa para contar.
"A Turquia nunca ia querer
ver o seu pai fundador, o qual vê
como uma pessoa sagrada, sendo retratado como uma pessoa
com fraquezas humanas", escreveu o diário "Turkish Daily
News", de língua inglesa, que
relatou esforços vãos de Antonio Banderas, Kevin Costner e
Yul Brynner para interpretá-lo.
Identidade nacional
Essa característica está na
origem de muitos dos problemas do país. A Turquia tem
uma enorme capacidade de negação, o que inclui o genocídio
de armênios no começo do século 20 e uma grande minoria
curda cuja existência o Estado
só agora começa a reconhecer.
"Ataturk é usado como escudo por aqueles que interrompem o debate sobre muitas das
deficiências do país", escreveu
Ahmet Altan, um dos mais importantes intelectuais do país e
colunista do diário liberal "Taraf". "Eles atribuem um status
de Deus a Ataturk, e então escondem-se atrás dele."
Dundar baseou-se em uma
longa seleção de diários e cartas
de Ataturk que estiveram fechados por décadas em arquivos militares. O homem que
emerge é ainda mais radical nas
suas crenças do que aquele que
os turcos conhecem, diz ele.
Ataturk estava determinado,
por exemplo, a subordinar o islã e a forçar os turcos a aparentar e a se comportar como ocidentais. Dundar disse que só
pôde usar uma pequena fração
do material a que teve acesso
que revelava algo do que Ataturk pensava sobre o islã. O resto era muito explosivo, disse.
Houve algumas divergências
profundas em relação à história
oficial, embora o filme se aproxime dela. Em uma cena, Ataturk diz crer que as áreas habitadas predominantemente por
curdos deveriam ter status especial. O tema é extremamente
controverso no país, que teme a
secessão do sudeste curdo.
O filme estreou em 29 de outubro, Dia da República, a data
nacional do país, e está em cartaz em mais de 200 salas. Dundar, ciente da delicadeza do tema, apesar de seu fluente inglês
preferiu dar a entrevista em
turco, para a máxima precisão.
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