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São Paulo, terça-feira, 16 de dezembro de 2003

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O déspota capturado: nova lenda árabe


A imagem de Saddam derrotado talvez consiga afastar definitivamente os povos árabes da tentação de privilegiar a oposição ao Ocidente


GILES KEPPEL
ESPECIAL PARA "EL PAÍS"

A imagem mais emblemática da espetacular captura, retransmitida também por todas as estações de televisão do mundo árabe, é a de um Saddam de barba cerrada e aspecto de vagabundo sendo examinado por um médico americano. É uma imagem ainda mais poderosa do que a da destruição da estátua de Saddam em Bagdá. Entre os povos árabes, essa imagem evoca o destino dos déspotas do passado, reduzidos à condição de animais depois da derrota: por exemplo, o sultão otomano Bayazid, vencido em 1403 pelo conquistador mongol Tamerlão e exibido como troféu em uma jaula, com barbas e cabelos desgrenhados, alimentado de carne crua.
A força das imagens terá repercussões de longo prazo e transformará a atitude dos meios de comunicação árabes com respeito à sua relação ambivalente com o líder, monstruoso e carniceiro, mas ao mesmo tempo herói do nacionalismo árabe, símbolo da resistência contra o Ocidente.
A imagem de Saddam derrotado talvez consiga afastar definitivamente os povos árabes da tentação de considerar a oposição ao Ocidente como mais importante que o veredicto que devem pronunciar sobre a longa série de déspotas que os reduziram à miséria e ao subdesenvolvimento; talvez agora venham, enfim, a se conscientizar de que muitos de seus dirigentes fizeram a região retroceder sob todos os aspectos.
Agora que Saddam enfim caiu, resta ainda a outra figura que encarna o ódio ao Ocidente e personifica o islamismo terrorista, Osama bin Laden. Apesar da clara vitória militar e política dos EUA, se os americanos não conseguirem capturar Bin Laden ou, caso ele esteja morto, se não puderem exibir seu cadáver, continuará a existir uma sombra.
No Iraque, a imagem do líder forçado a exibir os dentes, como fosse um cavalo, suscitou gritos de júbilo em árabe durante a entrevista do administrador americano do país, Paul Bremer. Resta saber se esse sentimento de alegria se traduzirá em desalento entre os fiéis do ex-ditador, ou se os ataques contra a coalizão e os ocidentais prosseguirão sob os auspícios de militantes islâmicos radicais, inspirados de maneira mais ou menos direta pela Al Qaeda. De fato, a imagem patética de Saddam num refúgio que lembra mais a guarida de um eremita do que um bunker ditatorial não aparenta indicar que estivesse dirigindo uma rede eficaz; ele mais parecia um animal acuado.
O que se tem a temer é que, desde os primeiros momentos da fuga de Saddam, a luta contra os americanos tenha sido conduzida, no Iraque, por grupos que não estavam sob a autoridade do tirano. Por isso, a captura dele teria uma dimensão mais pedagógica e simbólica do que consequências militares imediatas.
A maioria dos árabes, nas TVs de seus países, apressou-se a pedir que Saddam fosse julgado no Iraque, por iraquianos. Se o objetivo é evitar que o processo contra Saddam se atole como o julgamento do ex-ditador sérvio Milosevic no tribunal internacional de Haia, é fundamental que o processo dê aos iraquianos, em especial, e aos árabes em geral a oportunidade de julgar as matanças do regime, o extermínio dos curdos, as centenas de milhares de mortos da guerra contra o Irã e da invasão do Kuait em 1991. E que, a partir disso, eles reflitam sobre o mito do nacionalismo e sobre a necessidade de democratizar as sociedades árabes, o que constitui o principal desafio para o futuro.
A importância da captura de Saddam vai além das fronteiras do Iraque. O mundo árabe é exatamente o lugar em que o ditador conservou toda sua popularidade. Caso não seja processado em seu país, poderá parecer vítima do imperialismo ocidental.
É importante que Saddam desfrute de um julgamento público e que seus advogados possam convocar, para sua defesa, os dirigentes europeus e americanos que até o final dos anos 80 se exibiam sem escrúpulos ao lado do ditador, em Bagdá.
O processo contra Saddam, além de levar à luz a monstruosidade do personagem e a dimensão de seus crimes, mostrará a ambivalência das relações entre o mundo árabe e os dirigentes ocidentais e apontará numerosos jornalistas, intelectuais e universitários que viviam graças a subvenções do regime, além de revelar a tolerância aplicada quanto a esse ditador "progressista" e os desvios ideológicos do baathismo.
No começo, o partido de Saddam difundia a mensagem de secularização da sociedade e de abandono dos dogmas religiosos mais obscurantistas; essa mensagem se transformou rapidamente em uma folha de parreira que ocultava a abjeta realidade da violência de um clã e de um feudo -Tikrit, a cidade em que Saddam procurou seu último refúgio- dedicados a açambarcar todos os proventos do petróleo e controlar a distribuição do poder político.
Saddam é sem dúvida um dos personagens mais monstruosos do último meio século; mas, se conseguiu prosperar durante 25 anos, foi porque nós, de Washington a Riad, passando por Paris e Argel, permitimos que se desenvolvesse. Se o julgamento for realizado, representará também um julgamento sobre o fracasso das ideologias nacionalistas que estão no poder no mundo árabe e se converteram em ditaduras, e sobre a cumplicidade que o ditador obteve de muitos, seduzidos por sua ideologia ou pela riqueza.

Gilles Kepel é catedrático de assuntos do Oriente Médio no Instituto de Estudos Políticos de Paris.


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