São Paulo, domingo, 16 de dezembro de 2007

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Périplo de cineasta traduz Rússia pós-União Soviética

Alexander Kessel sonhava com o espaço, foi militar e crupiê e hoje trabalha na TV

Apesar de detestar Putin, diretor de "Enquanto ele voava" prosperou sob seu governo e tornou-se retrato bem-acabado de seu tempo

IGOR GIELOW
ENVIADO ESPECIAL A MOSCOU

Alexander Kessel sonhava, como todo garoto soviético que cresceu nos anos 70, ser um cosmonauta famoso. Por razões tão tortuosas quanto a história russa das últimas duas décadas, esse judeu ucraniano com sotaque moscovita não foi ao espaço, mas ironicamente é o cosmos o tema que talvez o torne conhecido.
Kessel atende a porta com um sorriso algo desconfiado no rosto, chinelos e cara de sono. Pede para as visitas deixarem seus sapatos à porta e, depois de arrumar um pouco de salmão defumado com pão e abrir uma garrafa de pinot noir californiano, pergunta: "O que exatamente você quer saber?".
Bem, no restrito círculo do cinema independente russo, ele ganhou fama, mas a reportagem está lá não só por isso. Afinal de contas, "Enquanto ele voava", seu projeto de conclusão do curso da Escola de Diretores e Roteiristas de Moscou, nunca foi lançado comercialmente, apesar de ter ganho dez prêmios internacionais para curtas-metragens desde que foi finalizado em 2006.
Mas é a história de Kessel que atrai: aos 37 anos, ele é um retrato vivo das mudanças que o maior país do mundo vem sofrendo desde que sobreveio aquilo que o presidente Vladimir Putin chama de "o maior desastre geopolítico do século 20", o fim da União Soviética.
"Também queria ser cineasta, é verdade, só que eu levei a sério a minha tentativa de ir para o espaço", conta Kessel. Em "Enquanto ele voava", os desejos se fundem: em 35 minutos de uma narrativa precisa e delicada, é contada uma história alternativa do dia 12 de abril de 1961, quando a União Soviética lançou Iuri Gagarin ao espaço.
O filme enfoca a órfã sonhadora Masha, que ganhou fama ao receber Gagarin com um pote de leite quando ele aterrou em Smelovka, no sul da Rússia. O primeiro homem a ir ao espaço desceu de pára-quedas, tendo abandonado a cápsula no meio do caminho ao solo, um ato de bravura nunca depois repetido.
Tendo mudado aos quatro anos para Moscou, onde o pai russo trabalhava como engenheiro para o governo e a mãe ucraniana cuidava da casa, Kessel era um dos que se impressionavam com a história de Gagarin, mas estava longe do primeiro passo para seu objetivo: a escola de pilotagem da Força Aérea em Volgogrado.
Aos 15 anos, ele completou os estudos secundários e foi para a cidade. Durante dois anos, apesar das boas notas nos exames, não conseguia entrar. A resposta, diz ele, estava em seu passaporte: no item "nacionalidade", estava escrito "judeu", e não "ucraniano".
"Eu nunca quis mudar isso. Sou o que sou." Judeus não tinham muitas chances na terra do comunismo, e 1 milhão de pessoas emigraram a Israel com o fim do país.
Frustrado, Kessel voltou a Moscou e entrou no Exército para poder freqüentar o departamento de ciências espaciais na universidade militar. Novamente, não deu certo: em 1988, aos 18 anos, foi mandado para a antiga Alemanha Oriental.
Havia 380 mil soldados soviéticos naquela que era a linha de frente da Guerra Fria. O grau de prontidão era o maior do mundo. "Estávamos prontos para entrar em ação total em menos de oito horas. Só pararíamos em Paris", conta Kessel, que foi servir como cabo em Rathenow, em Brandenburgo, a poucos quilômetros da fronteira ocidental.
Eram 2.000 soldados no quartel, e Kessel foi treinado para ser comandante de tanque, recebendo o equipamento mais moderno à disposição do Exército Vermelho à época, o T-80. Apenas 15% dos tanques soviéticos eram desse modelo, e quase todos estavam na Alemanha comunista.
"Eu praticamente só estava no quartel para alguma troca de comando e nas eleições, quando tínhamos de votar em algum comissário. Não é muito diferente do que acontece nessas eleições agora", brinca ele, que diz "odiar Putin". No resto do tempo, pilotava tanques.
Kessel não pensava muito no apocalipse -ou algo similar- que aconteceria caso tivesse de executar suas ordens. "Uma vez, estávamos patrulhando a fronteira junto ao rio Elba e vimos blindados ocidentais da outra margem. O que eles pensavam? Nós fazíamos o que nos mandavam fazer."
Kessel estava mais preocupado com as pequenas diversões da vida militar -basicamente, descumprir uma longa lista de proibições. A mais bizarra era a caça ao cervo, abundante em Rathenow, usando como arma o canhão de 125 milímetros do T-80. "Só que, para não destroçarmos o bicho, substituíamos o projétil por um pedaço de pão preto duro. Colocávamos a carga explosiva e o pão. Quando atingia o veado, ele morria com o choque."

Cerveja
O contato com os locais, e principalmente as locais, era outra diversão vetada. Kessel se desculpa e não fala muito sobre a óbvia corte às moças, sob o olhar inquisitivo de sua mulher, Irina, com quem está casado há 11 anos e tem duas filhas pequenas, Bela, 5, e Sophia, 3.
Certa vez, houve um exercício militar em que os soldados ficavam espalhados pelos perímetros, longe dos olhos dos oficiais. Kessel recebeu dos companheiros uma missão arriscada: comprar cerveja com o dinheiro recolhido entre os sentinelas. O problema é que Kessel não falava alemão, apenas uma ou outra palavra. Com isso, "Lebensmittel" (comida) para ele era o equivalente a loja de alimentos, já que em russo elas se chamam simplesmente "Produkti" (produtos).
"Lá fui eu, carregando um rádio enorme com uma antena de dois metros de altura nas costas. Parei numa casa, eram umas 9h, e falei para um velhinho: "Lebensmittel". Ele voltou com um pedaço de pão, provavelmente achando que os russos tratam muito mal seus soldados", ri Kessel.
Ele se fez entender e conseguiu entrar numa loja. Ficou impressionado com a variedades de produtos -a Alemanha Oriental tinha o melhor padrão de vida do bloco soviético. E pelo menos cinco tipos de cerveja. Sem saber qual escolher, pegou as maiores garrafas e botou nos bolsos dez unidades. Voltou ao quartel, quase apanhando dos colegas: era uma cerveja sem álcool para gestantes.
Em 1989, o isolamento da vida militar não lhe dava idéia do rumo da história. "Só sabia que havia uma grande merda acontecendo, mas ninguém nos contava nada e não podíamos ter rádios", diz ele, que só ficou sabendo da queda do Muro de Berlim duas semanas após 9 de novembro daquele ano.
"Só entendi o que acontecia quando vimos um dia um bando de alemães ocidentais passeando de Harley-Davidson na cidade", lembra. Em junho de 1990, seu termo expirou, e ele foi colocado em um avião de carga de volta para casa.
Quando chegou a Moscou, falou com amigos e pensou em virar diplomata. "O Mgimo [sigla russa para Instituto Estatal para Relações Internacionais de Moscou] não aceitava nem mulher nem judeu. Mas novamente eu insisti", disse Kessel, Alex para os amigos mas próximos. Um deles é Ruslan Pukhov, três anos mais novo, que ele conheceu nos cursos preparatórios para tentar entrar no Mgimo.
"Ele era cabeça-dura e acabou conseguindo, o que foi uma surpresa generalizada ou um sinal de que realmente as coisas tinham mudado", diz Pukhov, hoje diretor de um think-tank militar. "Ele já falava em fazer um filme. A gente ironizava: "É, você vai mesmo ser o [Federico] Fellini russo"."
Foram anos difíceis. Na União Soviética, cursar o Mgimo significava vida ganha. Com a desintegração do país, tudo ficou incerto. Durante os seis anos em que ficaram no Mgimo, Kessel e seus amigos tiveram de se virar. "No começo, ganhávamos 40 rublos de ajuda oficial; ao fim, 6.000 rublos. Pouco importa, era sempre o suficiente só para duas refeições ao mês", afirma Pukhov.

Crupiê
A maioria dos alunos ia dar aula de línguas ou trabalhar na Intourist, a estatal de turismo. Mas Kessel inovou: virou crupiê no recém-aberto cassino da rua Novy Arbat. "Ganhávamos o equivalente a US$ 700, mas no fim do mês as gorjetas garantiam cerca de US$ 1.100. Estava rico", conta ele, que estudou alemão e inglês.
O problema é que ele tinha de trabalhar quase a noite toda, e o ritmo dos estudos era puxado. Pagou o preço: quando dormiu pela segunda vez em uma semana sobre a mesa de "blackjack", foi demitido. Era 1994, e ele foi trabalhar como analista no Rossiskie Kredit, o segundo maior dos 2.000 bancos que proliferaram na confusão econômica dos anos Ieltsin. "Ganhava três vezes menos, mas pelo menos não tinha mais olheiras."
Quando deixou o Mgimo, em 1996, encontrou um amigo que lhe ofereceu um emprego de relações-públicas para a Adidas em Paris. Voltou a juntar dinheiro, comprando em 1997 o apartamento em que mora às margens do rio Moscou.
Fez um ótimo negócio. Kessel vive em um prédio cujas áreas comuns lembram as de um cortiço, já que não há administração de condomínios na Rússia. Datado dos anos 30, erguido para a burocracia comunista, o prédio tinha vários andares abandonados. Kessel comprou primeiro um por US$ 110 mil e, depois, outro no andar de cima por US$ 90 mil. Reformou tudo e montou um dúplex que hoje, dez anos depois, vale mais de US$ 2 milhões.
Nessa época conheceu Irina, cinco anos mais nova, e em 1999 começou a trabalhar na ORT, maior canal estatal russo. Era o que chama de "diretor de marketing ativo" -ou seja, levantava dinheiro entre anunciantes. Ganhou o equivalente a US$ 10 mil mensais, durante os cinco anos lá. "Foi quando vi que poderia tentar realizar meu segundo sonho, já que para ir ao espaço iria precisar de mais dinheiro."
Em dois anos, esse fã do polonês Krystof Kieslowski cursou a escola de direção e, com US$ 50 mil do próprio bolso, rodou "Enquanto ele voava". Conhecidos da TV gostaram do que viram e mandaram o DVD para alguns festivais de curta-metragens. Foi um sucesso alternativo, encabeçando a mostra de curtas do Kinovtar, o Sundance Festival russo, em 2006.
"Fui premiado mais recentemente em Teerã. Acho que eles não souberam que eu sou judeu", brinca. "Mas o problema é encontrar espaço para algo independente do Estado."
Nem Kessel nem Irina votaram nas eleições parlamentares de 2 de dezembro, que confirmaram o domínio total de Putin no Parlamento. "Eu só estou esperando o patriarca ortodoxo Alexei 2º vir a público dizer que Putin foi escolhido por Deus e toda a Rússia tem de aceitá-lo como czar. Não consigo suportar isso, embora não possa me queixar muito do ponto de vista prático", afirma o cineasta, lembrando que voltou ao cargo da TV estatal -ganhando o dobro do que em sua primeira passagem.
Cinismo típico da era Putin? "Talvez, mas ainda quero fazer filmes, no plural", despediu-se Kessel, um representante bem-acabado do "zeitgeist" da Rússia do século 21.


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