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ARTIGO
Por trás da miniguerra no Cáucaso, o xadrez geopolítico
Parece que os Estados Unidos se enganaram redondamente quando imaginaram ter alguma espécie de privilégio de superpotência em sua partida contra a Rússia
Dmitry Kostyukov-9.ago.08/France Presse
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Tanque russo passa por pasto em Dzhaba, Ossétia do Sul; resposta de Moscou à invasão da região rebelde desestabilizou a Geórgia
IMMANUEL WALLERSTEIN
O mundo testemunhou nesta
semana uma miniguerra no
Cáucaso, e a retórica tem sido
intensa, embora em grande
medida irrelevante. A geopolítica é uma série de gigantescas
partidas de xadrez disputadas
entre dois jogadores, nas quais
estes buscam posições de vantagem. Nessas partidas, é crucial conhecer as regras vigentes
que regem os lances. Os cavalos
não podem andar na diagonal.
Entre 1945 e 1989, a partida
principal de xadrez era disputada entre os Estados Unidos e
a União Soviética. Ela se chamava a Guerra Fria, e as regras
básicas do jogo eram conhecidas metaforicamente como
"Yalta". A regra mais importante dizia respeito a uma linha
que dividia a Europa em duas
zonas de influência.
Essa linha foi chamada por
Winston Churchill de "Cortina
de Ferro" e se estendia de Stettin a Trieste. A regra dizia que,
não importasse quanta turbulência fosse instigada na Europa pelos peões, não haveria
guerra de fato entre os Estados
Unidos e a União Soviética. Ao
final de cada instância de turbulência, as peças voltariam a
suas posições originais.
Essa regra foi respeitada cuidadosamente até a queda dos
comunismos, em 1989, marcada mais notadamente pela destruição do Muro de Berlim.
É inteiramente verdade, como todos observaram na época,
que as regras de Yalta foram
anuladas em 1989 e que a partida disputada entre os Estados
Unidos e (desde 1991) a Rússia
mudou de maneira radical.
O maior problema desde então é que os Estados Unidos
não compreenderam direito as
novas regras do jogo. Eles se
proclamaram, e foram proclamados por muitos outros, a
única superpotência mundial.
Em termos de regras de xadrez,
isso foi interpretado como significando que os Estados Unidos tinham liberdade para movimentar-se pelo tabuleiro de
xadrez como bem entendessem
e, especialmente, para transferir antigos peões soviéticos para sua esfera de influência. Sob
Clinton, e mais notadamente
ainda sob George W. Bush, os
Estados Unidos passaram a jogar a partida dessa maneira.
Só havia um problema nisso:
os Estados Unidos não eram a
única superpotência mundial
-nem sequer eram uma superpotência.
Mais jogadores
O fim da Guerra Fria significou que os Estados Unidos foram rebaixados. De uma das
duas superpotências, passaram
a ser um Estado forte em meio
a uma distribuição realmente
multilateral do poder real em
um sistema inter-Estados.
Muitos países grandes passaram a poder disputar suas próprias partidas de xadrez sem
precisarem informar as duas
antigas superpotências de seus
lances. E começaram a fazê-lo.
Duas decisões geopolíticas
de importância maior foram
tomadas nos anos Clinton.
Primeiro, os Estados Unidos
fizeram pressão grande e mais
ou menos bem-sucedida para
que os antigos satélites soviéticos ingressassem na Otan [a
aliança militar ocidental].
Esses países estavam ansiosos por entrar, apesar de os países-chave da Europa Ocidental
-Alemanha e França- relutarem um pouco em seguir esse
caminho. Eles viam a manobra
dos EUA como tendo o objetivo, em parte, de limitar sua recém-adquirida liberdade de
ação geopolítica.
A segunda decisão-chave dos
Estados Unidos foi tornar-se
jogador ativo nos realinhamentos de fronteiras dentro da antiga República Federal da Iugoslávia. Isso culminou na decisão de autorizar a secessão de
facto de Kosovo da Sérvia e implementá-la com suas tropas.
A Rússia, mesmo sob Boris
Ieltsin, ficou bastante insatisfeita com essas duas ações dos
Estados Unidos. Mas a desorganização política e econômica
da Rússia durante os anos Ieltsin era tão grande que o máximo que ela pôde fazer foi queixar-se, em voz bastante fraca, é
mister acrescentar.
A chegada ao poder de George W. Bush e Vladimir Putin foi
mais ou menos simultânea.
Bush decidiu levar a tática da
superpotência única (ou seja,
os Estados Unidos podem movimentar suas peças da maneira como decidem por conta
própria) muito mais longe do
que fizera Clinton.
Regras próprias
Para começar, em 2001 Bush
retirou o país do Tratado de
Mísseis Antibalísticos firmado
por EUA e União Soviética em
1972. Em seguida, anunciou
que os Estados Unidos não ratificariam dois tratados novos
assinados durante o governo
Clinton: o Tratado de Proibição
Total de Testes, de 1996, e as
modificações acordadas no tratado de desarmamento nuclear
SALT 2. Então Bush anunciou
que os Estados Unidos iriam
adiante com seu Sistema Nacional de Defesa Antimísseis.
E, em 2003, Bush invadiu o
Iraque. Como parte dessa iniciativa, os Estados Unidos buscaram e obtiveram o direito de
construir bases militares e o direito de sobrevoar repúblicas
centro-asiáticas que antes faziam parte da União Soviética.
Além disso, os EUA promoveram a construção de dutos
para o escoamento do petróleo
e gás natural da Ásia Central e
do Cáucaso, passando ao largo
da Rússia. E, finalmente, os Estados Unidos fecharam um
acordo com a Polônia e a República Tcheca para instalar uma
defesa antimísseis, ostensivamente para proteção contra
mísseis iranianos. A Rússia, porém, viu essas instalações como
sendo voltadas contra ela.
Putin decidiu reagir com
muito mais eficácia que Ieltsin.
Sendo um jogador prudente,
porém, ele primeiro se movimentou para fortalecer sua base doméstica, restaurando a
força da autoridade central e
revigorando as Forças Armadas russas. Nesse momento, as
marés da economia mundial
mudaram, e, de uma hora para
outra, a Rússia tornou-se a rica
e poderosa controladora não
apenas da produção petrolífera, mas também do gás natural
tão necessário aos países da Europa Ocidental.
Adversário fortalecido
Então Putin começou a agir.
Ele criou relacionamentos com
a China, selados em tratados.
Manteve relações estreitas com
o Irã. Começou a expulsar os
Estados Unidos de suas bases
na Ásia Central. E assumiu uma
atitude firme contra a ampliação da Otan para duas zonas-chave: a Ucrânia e a Geórgia.
A fragmentação da União Soviética levara ao surgimento de
movimentos secessionistas étnicos em muitas antigas repúblicas, incluindo a Geórgia.
Quando, em 1990, a Geórgia
procurou pôr fim ao status autônomo de suas zonas étnicas
não-georgianas, estas imediatamente se declararam Estados
independentes. Não foram reconhecidas por nenhum país,
mas a Rússia garantiu sua autonomia de fato.
Os fatores mais imediatos a
incentivar o desencadeamento
da miniguerra atual foram dois.
Em fevereiro, Kosovo formalmente converteu sua autonomia de fato em independência de direito. Sua iniciativa foi
apoiada e reconhecida pelos
Estados Unidos e muitos países
da Europa ocidental. A Rússia
avisou, na época, que a lógica
dessa iniciativa se aplicaria
igualmente a secessões de fato
ocorridas nas antigas repúblicas soviéticas. Na Geórgia, a
Rússia imediatamente e pela
primeira vez reconheceu a independência de direito da Ossétia do Sul, em resposta direta
à de Kosovo.
E, na reunião da Otan de abril
deste ano, os Estados Unidos
propuseram que Geórgia e
Ucrânia fossem recebidas num
chamado Plano de Ação para
Ingresso (na Otan). A Alemanha, a França e o Reino Unido
se opuseram, dizendo que isso
provocaria a Rússia.
Jogada desesperada
O presidente neoliberal e fortemente pró-americano da
Geórgia, Mikhail Saakashvili,
se desesperou. Ele via a reafirmação da autoridade georgiana
na Ossétia do Sul (e também na
Abkházia) como perspectiva
cada vez mais distante, de maneira permanente.
Assim, escolheu um momento de desatenção da Rússia (Putin estava nas Olimpíadas, o
presidente Dmitri Medvedev,
de férias) para invadir a Ossétia
do Sul. As insignificantes forças
militares da Ossétia do Sul desabaram completamente, é claro. Saakashvili imaginava que
forçaria os Estados Unidos (e
também a Alemanha e a França) a sair em seu apoio.
Em vez disso, houve uma reação militar russa imediata, superando o pequeno Exército
georgiano de forma avassaladora. O que Saakashvili recebeu
de George W. Bush foi retórica.
Afinal, o que Bush podia fazer?
Os Estados Unidos não são
uma superpotência. Suas Forças Armadas estão inteiramente tomadas por duas guerras
que estão perdendo no Oriente
Médio. E, o mais importante de
tudo, os Estados Unidos precisam da Rússia muito mais do
que a Rússia precisa deles. O
chanceler russo, Sergei Lavrov,
em artigo no "Financial Times", fez questão de observar
que a Rússia é "parceira do Ocidente com relação ao Oriente
Médio, Irã e Coréia do Norte".
Quanto à Europa ocidental, a
Rússia, essencialmente, controla seu suprimento de gás.
Não foi por acaso que foi o presidente Nicolas Sarkozy, da
França, e não Condoleezza Rice, quem negociou a trégua entre Geórgia e Rússia. A trégua
contém duas concessões essenciais da Geórgia. Esta se comprometeu a não mais recorrer à
força na Ossétia do Sul. E o
acordo não faz referência à integridade territorial georgiana.
Assim, a Rússia emergiu
muito mais forte que antes.
Saakashvili apostou tudo o que
tinha e agora esta geopoliticamente falido. E, como nota de
rodapé irônica, a Geórgia, uma
das últimas aliadas nos EUA na
coalizão no Iraque, retirou seus
2.000 soldados desse país. Esses soldados vinham exercendo
um papel crucial nas áreas xiitas e agora terão que ser substituídos por soldados dos EUA,
que, para isso, terão que ser retirados de outras áreas.
Quando se joga xadrez geopolítico, é aconselhável conhecer as regras, para não ser derrubado pela jogada do rival.
IMMANUEL WALLERSTEIN, pesquisador sênior na Universidade Yale, é autor de "O Declínio
do Poder Americano"
Tradução de CLARA ALLAIN
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