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ARTIGO
Missão do sucessor de Kofi Annan é completar reforma das Nações Unidas
CELSO AMORIM
ESPECIAL PARA A FOLHA
No momento em que Kofi
Annan passa o comando das
Nações Unidas ao diplomata
sul-coreano Ban Ki-Moon, é
apropriado fazer um balanço
dos principais avanços dos últimos oito anos e apontar os temas que, na visão brasileira, requerem atenção especial do
próximo secretário-geral.
Já se disse que o cargo de secretário-geral da ONU é um dos
"empregos" mais difíceis no
mundo. É grande a distância
entre crises cada vez mais complexas e a vontade coletiva dos
Estados-membros de contribuir para seu equacionamento.
Tive a oportunidade de trabalhar com Annan em vários
momentos durante o presente
governo. Mantivemos intenso
diálogo sobre crises no Oriente
Médio, na África e mesmo na
América Latina. Às vésperas da
ação armada contra o Iraque, o
presidente Lula enviou-me como emissário para explorar,
junto ao secretário-geral, soluções que pudessem evitar o
conflito. Em 2004, a iniciativa
do presidente Lula em prol de
uma Ação Internacional contra
a Fome e a Pobreza, que reuniu
59 chefes de Estado e de governo, em Nova York, recebeu valioso apoio do secretário-geral.
Kofi Annan demonstrou, em
várias oportunidades, seu genuíno compromisso com a promoção da paz e do desenvolvimento. Já no início de 1999 havíamos cooperado ativamente,
quando fui encarregado de presidir três painéis que realizaram abrangente avaliação da situação iraquiana. A proposta
que daí emanou um novo mecanismo de inspeções, jamais
implementado de forma plena,
constituía alternativa viável para a contenção do regime iraquiano sem o uso da força.
Além disso, modificações pontuais no regime de sanções teriam aliviado o sofrimento do
povo do Iraque, vítima da
opressão do ditador e da intransigência de seus adversários externos.
Os exemplos do Iraque e da
luta contra a fome e a pobreza
ilustram como seria impossível, hoje, visualizar o mundo
sem as Nações Unidas. Lutas
memoráveis travadas nas últimas décadas -descolonização,
fim do apartheid, solução de
conflitos internos em diversos
países- provavelmente teriam
sido muito mais árduas, ou
mesmo impossíveis, sem a ajuda da organização.
Um mundo sem a ONU seria
lugar sombrio e violento. Nosso
compatriota Sérgio Vieira de
Mello morreu tragicamente,
enquanto tentava ajudar a reconstruir um Iraque arrasado
por uma guerra que a ONU jamais aprovou. Em contraste, a
participação do Brasil na operação de paz no Haiti dá-se ao
abrigo do Conselho de Segurança. Com o respaldo da comunidade internacional e a
ampla presença dos países da
América do Sul, e da América
Latina, a Minustah tem contribuído para a superação dos
problemas haitianos, ajudando
de forma decisiva no processo
eleitoral e no esforço de reconstrução e desenvolvimento
daquele país latino-americano.
Consciência do mundo
As Nações Unidas são freqüentemente criticadas porque queremos mais agilidade
ou porque temos expectativas
irrealistas em relação ao que se
pode alcançar. O êxito da organização, contudo, não se mede
apenas por resoluções cumpridas à risca. A ONU ajuda a formar consensos globais.
É, na
verdade, uma espécie de "consciência do mundo". E nisso ela
é insubstituível.
Ao longo dos anos 90, a organização promoveu ciclo de conferências globais sobre direitos
humanos, desenvolvimento social, situação da mulher, direitos da criança e meio ambiente.
Essas iniciativas ajudaram a
dar legitimidade e a difundir
princípios e valores que hoje fazem parte de nossas preocupações cotidianas.
A ONU ainda enfrenta muitas limitações. A paralisia do
Conselho de Segurança no conflito do Líbano, por exemplo,
fez com que, nas palavras de
Kofi Annan, a "matança" se
prolongasse, causando mais sofrimento e dor.
Obviamente, limitações como essa derivam da natureza
das relações internacionais e da
maneira por vezes egoísta como os Estados se comportam.
Mas isso não quer dizer que seja impossível melhorar o modo
como as decisões são tomadas
na ONU e, assim, capacitá-la a
enfrentar os desafios contemporâneos. Passos importantes
já foram dados no processo de
reforma, impulsionados em
grande parte por Kofi Annan.
A criação do Conselho de Direitos Humanos deu status
mais elevado ao tratamento
desse tema tão amplo e complexo no âmbito das Nações
Unidas. É importante que o
conselho não seja usado simplesmente para apaziguar a
"má consciência" de alguns
com condenações seletivas,
freqüentemente politizadas e
de escasso efeito prático.
O objetivo do conselho deve
ser o de contribuir para mudanças concretas na vida das
pessoas. É o que buscamos,
com propostas como a do relatório global sobre direitos humanos e a criação de um mecanismo de revisão ("peer review") em que todos os países
estejam sujeitos a escrutínio.
Paz
Outro avanço significativo
foi a criação da Comissão de
Construção da Paz. O Brasil
tem sustentado que países recém-saídos de conflitos devem
continuar a ser acompanhados
por alguma instância da ONU,
uma vez superada a situação
mais emergencial de segurança. Questões como as do Haiti,
Serra Leoa, Burundi e tantas
outras, nas quais a fragilidade
político-institucional soma-se
à pobreza e ao subdesenvolvimento, devem ser objeto de
atenção integral das Nações
Unidas, e não ficar entregues
exclusivamente a "clubes de
doadores". Esse será o papel da
nova comissão.
O papel político da Assembléia Geral, único órgão a congregar a totalidade dos Estados-membros, necessita ser revitalizado. Como já ficou demonstrado no passado, a exemplo da crise de Suez, em 1956,
mesmo em temas ligados à segurança internacional a Assembléia Geral tem e deve ter
um papel a desempenhar. Mas
ela precisa se concentrar em assuntos prioritários para os países em desenvolvimento, como
o cumprimento das Metas do
Milênio. Temas como a não-proliferação e o desarmamento
também devem estar na agenda
da assembléia.
Os trabalhos do Ecosoc [sigla
em inglês pra áreas econômicas
e sociais] precisam ser reforçados para torná-los mais relevantes. O órgão deveria ser liberado de suas atribuições de
mera supervisão burocrática
para poder tratar do essencial:
como promover o desenvolvimento. No momento em que o
G8 busca dialogar com economias ditas emergentes, o Ecosoc poderá aumentar sua interlocução com o próprio G8, o
Banco Mundial, o FMI e a
OMC. Isso permitirá debate genuíno sobre temas econômicos
e sociais. Mesmo quando não
possa tomar decisões de caráter operativo, os debates no
Ecosoc serão fonte de inspiração para outros organismos.
O Conselho de Segurança,
órgão que tem a responsabilidade primária de zelar pela paz
e segurança internacionais, é
essencialmente o mesmo de
1945. De lá para cá, o mundo viveu mudanças expressivas. Estados foram criados a partir do
processo de descolonização,
outros se fragmentaram. Os
países em desenvolvimento
passaram a ter maior presença
no cenário internacional. O
Conselho de Segurança precisa
ser urgentemente atualizado.
Um dos problemas centrais
no funcionamento do conselho
é o veto, que, para muitos, é privilégio inaceitável. Não acredito que seja possível eliminá-lo
no curto prazo. Seria irrealista
pensar que os membros permanentes atuais venham a
abrir mão desse poder. Durante
a Guerra Fria, o direito de veto
podia ser compreendido como
meio de evitar decisões que,
por afetarem interesses nacionais de uma das grandes potências, fossem capazes de levar a
novo conflito mundial. Mas o
veto tem sido muitas vezes usado de maneira quase fútil, em
resoluções de caráter puramente declaratório. O Brasil
defende que cada veto esteja
sujeito a explicação. O país que
veta uma iniciativa deve assumir plena responsabilidade
moral pela ação. Outra idéia seria interpretar a Carta da ONU
para permitir que membros
permanentes do conselho
dêem voto negativo, sem que
isso implique necessariamente
vetar um projeto de resolução.
Mas o problema mais grave é
a composição do conselho.
Nem a África nem a América
Latina estão representadas entre os membros permanentes.
Os países em desenvolvimento
da Ásia, com exceção da China,
também não. O G4, que reúne
Brasil, Índia, Alemanha e Japão, defende a necessidade de
ampliação do número de membros permanentes para que o
conselho melhor reflita a realidade atual. A fim de ajudar na
formação de um sistema mais
democrático, os novos membros permanentes não terão direito a veto.
Não se trata, com a reforma
do conselho, de criar novos privilégios ou membros "eternos".
Deixemos aos teólogos a discussão sobre a "eternidade".
Em política -e a política internacional não é exceção- tudo
muda, e mesmo o termo permanente não deixa de ser uma
força de expressão. O que não é
aceitável é a obstrução indefinida do debate. Quem sofre
com isso é a própria ONU.
Impulsos
Os diplomatas que trabalham em organismos internacionais costumam ficar divididos entre dois impulsos: de um
lado, o nacional, a defesa de seu
país; de outro, o internacional,
a luta pelas causas universais,
de toda a humanidade. Saber
conciliar esses dois impulsos é
a própria história das Nações
Unidas. Caberá ao novo secretário-geral, Ban Ki-Moon, enfrentar esse desafio.
CELSO AMORIM é o ministro das Relações Exteriores do Brasil
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