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São Paulo, terça-feira, 18 de março de 2003

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GUERRA IMINENTE

É como se, na capital iraquiana, existíssemos em um mundo bem distante dos B-52s e mísseis que logo vão fazer o chão tremer sob nossos pés

Defensores de Bagdá ainda jogam futebol

ROBERT FISK
DO "THE INDEPENDENT", EM BAGDÁ

Para Bagdá, é a 1.001ª noite, as últimas horas de fantasia. Enquanto os inspetores da ONU se preparavam para deixar a cidade, nas primeiras horas da madrugada de hoje, Saddam Hussein nomeava seu filho Qusay para comandar a defesa da cidade dos califas contra a invasão americana. Ainda assim, no clube das Forças Armadas ontem, encontrei os defensores jogando futebol.
A TV iraquiana prepara a população para o bombardeio com música do filme "Gladiador". Mas os iraquianos continuaram ontem desarmando a nação a ser invadida, observando a destruição de mais dois mísseis Al Samoud 2.
Os inspetores da ONU, a poucas horas de fazer as malas, até foram ver essa última porção de desarmamento que os americanos exigiram tão fervorosamente e na qual perderam completamente o interesse agora. Com os inspetores longe, nada impede EUA e Reino Unido de iniciarem o bombardeio das cidades do Iraque.
Bagdá vai se tornar Stalingrado, então, como nos diz Saddam? Não parece. As estradas estão abertas, postos de controle frequentemente vazios, os soldados da cidade tragando seus cigarros diante do prédio da ONU.
Das margens do rio Tigre -uma versão enlameada do Volga de Stalingrado- observei ontem à noite os pescadores jogando suas linhas para os peixes "masghouf" que os bagdalis comem depois do pôr-do-sol.
A proposta de resolução da ONU é retirada? Tony Blair convoca uma reunião de emergência de gabinete? Bush vai falar ao povo americano? Bagdá, ao que parece, caminha sonâmbula em direção a seu lugar na história.
Como posso ter esbarrado em uma fila de iraquianos diante do cinema na rua Saadun ontem à noite? Converse com qualquer iraquiano e ele lhe dirá que adora -mais do que adora- Saddam.
O desprendimento é extraordinário, como se respirássemos outro ar aqui em Bagdá, como se existíssemos em um mundo bem distante dos B-52s e mísseis de cruzeiro e "mães de todas as bombas", que logo vão fazer o chão tremer sob nossos pés.
A história e a cultura do mundo árabe estão prestes a ser visitadas por um terremoto fabricado no Ocidente sem precedentes. Até o pós-Primeira Guerra e o colapso do Império Otomano vão se tornar obsoletos nas próximas horas. Ainda assim, mais um monolito de proporções épicas espera para ser revelado como uma estátua de bronze de Saddam em Bagdá.
Em meio à fumaça do trânsito de Bagdá ontem, entre seus velhos táxis e ônibus novos em folha, procurei sinais da tempestade que se aproxima. Achei alguns.
Filas de carros nos postos de gasolina, antiquários fechando suas portas por tempo indeterminado, trabalhadores retirando os computadores do prédio de um ministério, exatamente como os sérvios fizeram antes da visita da Otan a Belgrado na primavera de 1999. Será que os iraquianos não sabem do que está para acontecer? Será que Saddam sabe?
Só posso me lembrar do formidável relato de um ex-embaixador cubano em uma delegação enviada por Fidel em 1990 para convencer Saddam da enormidade do poderio americano que seria dirigido contra ele se não saísse do Kuait. "Recebi vários relatórios como esse", respondeu Saddam. "É nosso embaixador na ONU que os envia, e, na maioria das vezes, eles acabam aqui." E, então, Saddam apontou para uma lixeira de mármore no chão.


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