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São Paulo, terça-feira, 18 de março de 2003

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ARTIGO

Uma guerra justa


O "não à guerra" é proferido com tanta demagogia que expressar dúvidas leva você a ser tachado de traidor

Ou o direito é o direito, e deve ser respeitado, ou a ONU não passa de fachada roída pela imoralidade



YVES ROUCAUTE
ESPECIAL PARA O "LE MONDE"

O direito sem espada não passa de discurso, e a moral sem vontade, de um sonho vazio.
O espírito de Munique percorre a França. O "não à guerra no Iraque" é proferido com tanta demagogia pelas elites, a mídia e os intelectuais que jogam com o chamado "nacionalismo dos pobres" (Brecht), com os supostos interesses da França e seu poder, que expressar dúvidas leva você a ser tachado de traidor de sua pátria.
Entretanto dúvidas propriamente ditas eu não tenho. A guerra é justa. Justa e necessária. Necessária porque a moral, o direito e a razão política a exigem.
A exigência moral já seria suficiente para encerrar o debate. Quer ele tenha ou não armas químicas e bacteriológicas, o regime de Saddam Hussein, que vê a humanidade como meio, não como fim, é imoral. Imoral e criminoso.
Não é apenas uma ditadura, mas um totalitarismo. Quem já não sabe sobre o Centro de Detenção de Bagdá e seus porões, onde se tortura e se mata? O terror imposto à população, a repressão sanguinária movida contra os opositores, que não têm liberdade para se manifestar? A militarização da população? Os crimes de Saddam contra o Irã e os curdos? Sua vontade de desestabilizar seus vizinhos, de destruir Israel? O apoio que dá a terroristas?
"Está aberta a temporada de caça aos tiranos": esta palavra de ordem me convém mais do que os desfiles de pacifistas que, ontem, aplaudiam os acordos de Munique, saudavam Fidel Castro ou a instalação dos mísseis soviéticos e que, hoje, querem salvar o governo de um dos tiranos mais sanguinários do planeta, sob o pretexto de que é melhor isso do que a guerra.
Será que liberdade e dignidade não valem uma guerra? Elas não exigem que libertemos um povo que se encontra acorrentado?
Quando os pacifistas respondem que existem outros regimes vergonhosos e vêem na escolha do regime iraquiano a prova da duplicidade americana, quase tenho vontade de rir. Será que, sob o pretexto de que muitos assassinos estão soltos nas ruas, deveríamos deixar de exigir que a polícia imobilize aquele que consegue prender? Ou será que deveríamos lhe propor que continue a espalhar o terror entre os seus, com a única condição de que pare de ameaçar os habitantes de outras terras?
É verdade que aqueles que querem nos dar aulas de moral não se constrangeram ao ver a quase totalidade dos regimes ditatoriais (excetuando os que eram refreados pelos EUA) avançar, mascarados, por trás deles -desde a China que arrasa o Tibete até Osama bin Laden exportando seu ódio, desde a Rússia que bombardeia a população civil da Tchetchênia até o Sudão, que inflige as leis mais pavorosas às mulheres, passando pelas ditaduras francófonas africanas esquecidas.
O direito do qual se arrogam porta-vozes não é mais favorável aos pacifistas. Os EUA contam com uma resolução da ONU que os autoriza a agir se Saddam Hussein não oferecer provas da destruição de armas de destruição em massa. Esses tartufos fingem acreditar que cabe aos inspetores provar que essas armas não existem. Desse modo, pela transferência retórica do ônus da prova, cria-se o jogo de gato e rato.
Ou o direito é o direito, e deve ser respeitado, ou a ONU não passa de uma fachada, roída por traças, da imoralidade e da desordem internacionais, e nesse caso precisamos passar longe dela.
É exatamente por saber disso que nossos "semi-hábeis" (Pascal) se entrincheiram por trás da razão política, dizendo que os EUA agem "pelo petróleo".
Que o interesse possa ser o fator que move a intervenção não basta para condenar essa intervenção. Como observou Kant, não é preciso que uma conduta seja empreendida segundo dita a moral para que seja justa -basta que se enquadre no que o é.
Além disso, todo Estado tem o dever de assegurar suas condições de sobrevivência. Ora, o petróleo é matéria-prima estratégica, a partir da qual uma chantagem poderia ser feita às repúblicas, chantagem essa já sofrida, aliás, quando Saddam Hussein ameaçou incendiar 1.500 poços. Logo, o petróleo pode legitimar a guerra.
Na realidade, não é a razão que guia nossos pacifistas, mas a paixão. E o odioso, que leva extrema direita, extrema esquerda e forças nacionalistas arcaicas a se unir, disputa espaço com o absurdo.
Imaginemos por um instante o aconteceria se os EUA saíssem derrotados. Cada lado veria nisso uma prova de fraqueza que desestabilizaria os movimentos e governos muçulmanos moderados. Se não existe mais policial internacional, as esperanças mais desvairadas passam a ser permitidas.
Se, pelo contrário, a guerra é justa por sua finalidade política e humanitária, ela também o é por seus meios. Alguém falou em sangue? Ninguém pediu aos pacifistas que morram pelo Iraque. Não se trata de enviar à guerra soldados recrutados, mas profissionais. E todo o possível será feito para que as perdas de vidas humanas sejam as menores possíveis.
Com relação à população iraquiana, os meios empregados vão obedecer a esse princípio. Mortos? Certamente haverá. Sim, porque Saddam Hussein faz sua população de refém para não ceder diante da moral e do direito.
O direito sem espada não passa de discurso, e a moral sem vontade, de sonho vazio.

Yves Roucaute é professor de direito público e de ciências políticas na Faculdade de Direito de Nanterre, França.

Tradução de Clara Allain


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