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São Paulo, domingo, 18 de maio de 2003

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ARTIGO

A queda de Menem e o fim da cultura do capitalismo selvagem

JORGE LANATA
Na última terça-feira, dia 13, o poder de Carlos Menem, o homem que governou a Argentina durante dez anos e pretendia se reeleger, caiu como um castelo de cartas com a intensificação dos rumores de que ele renunciaria à disputa no segundo turno da eleição presidencial.
A notícia tinha acabado de ser confirmada, na quarta-feira, 14, quando, durante spot na televisão dirigido por Ramiro Agulla -o mesmo que maquiou a campanha eleitoral e a comunicação governamental do derrocado Fernando De la Rúa-, Menem disse que, como Eva Perón, renunciava "às honras, mas não à luta".
A citação histórica não era casual: na noite anterior, enquanto a Argentina inteira se mantinha em suspense diante da indecisão do candidato, o círculo mais próximo de Menem previa "um novo 17 de outubro", fazendo referência ao dia da primavera de 1945 em que a população se mobilizou para libertar o general Perón da prisão e o proclamou presidente.
O sonho dos poucos que restavam no círculo menemista não passou de um desejo impossível -apenas algumas centenas de militantes se concentraram diante do hotel Presidente, em Buenos Aires, para aplaudir Menem, que saiu ao balcão em dois momentos e repetiu sua frase já famosa: "Não os decepcionarei".
Na realidade, ele os decepcionou, sim, apenas algumas horas mais tarde.
Na crise, o peronismo voltou a manifestar seu destino de partido verticalista, esvaziado de seu conteúdo histórico e transformado num grupo de pressão que se acomoda em qualquer lugar onde esteja batendo sol: até mesmo o governador de La Rioja, a Província de Menem, terminou por alinhar-se com Néstor Kirchner, o adversário de Menem no segundo turno, amplamente favorito.
A renúncia de Menem ao segundo turno eleitoral foi seu último e desesperado gesto para se aferrar ao poder: Menem tentou negociar com Duhalde um pacto de imunidade que lhe permitisse continuar em liberdade durante o novo governo e topou com a recusa do futuro presidente, Néstor Kirchner, que declarou: ""Não chegamos até aqui para negociar com o passado".
Foi uma senadora desconhecida de La Rioja quem respondeu ao receio jurídico de Menem, oferecendo a ele a chance de ocupar seu cargo. Se Menem aceitar, viverá os próximos quatro anos sob a proteção da imunidade parlamentar.
Assim, o papel futuro de Menem é incerto: ele ainda conta com algum respaldo econômico, baseado no dinheiro negro da corrupção e dos vínculos mais ou menos sólidos que tem com os proprietários de alguns meios de comunicação.
Talvez tudo isso baste para que ele lance contra o novo presidente farpas constantes, como um leão ferido. A imagem pública do ex-presidente passa por seu pior momento: sua decisão de abandonar a eleição foi tomada no momento em que todos os pesquisadores apostavam em sua derrota por 70% contra 30% dos votos, sendo que alguns se aventuravam a prognosticar porcentagens ainda piores -para alguns deles, Menem teria até mesmo menos do que os 24% dos votos conseguidos no primeiro turno.
A porcentagem dos votos em favor de Kirchner era tão grande que chegou a assustar seu principal padrinho, o presidente interino Eduardo Duhalde. Um candidato com mais de 70% dos votos se torna impossível de ser manipulado.
Por isso, ninguém descarta a possibilidade de que dois inimigos íntimos como Duhalde e Menem tenham negociado algumas condições, num encontro no qual, para citar Jorge Luis Borges (1899-1986), "os uniu não o amor, mas o medo".
O menemismo caiu em meio a uma debandada da tropa própria, entre declarações que suscitaram a vergonha alheia e fortes demonstrações de ressentimento que chegaram ao nível das agressões físicas contra jornalistas e fotógrafos em La Rioja.
Com Menem, nesta semana, desaparece também uma cultura que dominou o cenário político e social da Argentina durante dez anos: a apologia do capitalismo selvagem, a pizza com champanha, a exclusão de quase dois terços do país dos benefícios da economia e uma visão confusa e quase anarquista do papel do Estado, visão essa que levou a seu virtual desaparecimento em razão das privatizações e dos monopólios privados amparados pela lei.
A intervenção aberta e declarada do Poder Executivo na Justiça, os indultos e o estado geral de impunidade diante dos casos de corrupção, tudo isso marcou aqueles anos a fogo. Sua saída, assim como seu começo, não esteve à altura das circunstâncias.


Tradução de Clara Allain


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