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São Paulo, domingo, 18 de maio de 2003

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TRANSIÇÃO NA ARGENTINA

Segundo dois expoentes da atual boa fase do cinema argentino, população seguirá novo governo passo a passo

Argentino exigirá mudança, dizem cineastas

OTÁVIO DIAS
DA REDAÇÃO

A população argentina está esperançosa em relação ao governo de Néstor Kirchner, eleito presidente da Argentina na última quarta-feira, mas, cautelosa, acompanhará passo a passo as decisões do novo presidente e exigirá que ele avance na construção de um novo modelo para o país.
Assim pode ser resumida a atitude do cidadão comum diante do novo momento político, segundo dois cineastas argentinos entrevistados pela Folha.
Juan José Campanella, 43, e Pablo Trapero, 31, são representantes da atual geração de cineastas argentinos que, apesar da profunda crise dos últimos anos (em especial desde 2001), têm realizado filmes em quantidade e com qualidade, com boas bilheterias.
O primeiro é diretor de "O Filho da Noiva" (2001), sucesso de bilheteria no Brasil. O segundo filmou "El Bonaerense" (2002), ainda inédito no circuito brasileiro.
A boa fase do cinema argentino, apelidada de "buena onda", traduziu-se, ao longo de 2002, em 51 estréias (no Brasil, foram 35), 76 prêmios internacionais e a parcela de 12% do público nas salas do país (30 milhões de espectadores).
Com esses resultados, ganhou força na crítica dentro e fora do país a idéia de que o cinema argentino vive um boom de produção e de qualidade e, embora os filmes nem sempre tratem explicitamente da crise econômica, eles têm tocado em temas relevantes na Argentina de hoje, como a violência, a falta de perspectivas, as frustrações pessoais.
Como os cineastas têm demonstrado, nesse momento difícil, uma capacidade especial de captar e traduzir o sentimento do argentino comum, a Folha propôs a dois deles que refletissem sobre algumas questões relacionadas à nova fase do país.
Leia abaixo seus comentários, feitos separadamente por telefone de Buenos Aires.


A sensação dos cidadãos argentinos no momento está entre a incerteza e a esperança

MENEM
J. J. Campanella -
Essa eleição foi como um grande coito interrompido. Porque todos queriam que Menem [o ex-presidente Carlos Menem, que renunciou à disputa no segundo turno na última quarta-feira] perdesse por 80%. Lamentavelmente, essa eleição não pode ser analisada de um ponto de vista normal porque muitas pessoas votaram baseadas em cálculos de como derrotá-lo. Sem Menem, os percentuais de todos os outros candidatos teriam sido diferentes. Por outro lado, a morte política definitiva de Menem fará uma diferença incrível. Menem é nosso "Terminator". Quantas vezes teremos de matá-lo?

"QUE SE VAYAN TODOS"
Campanella -
Esse foi um slogan que surgiu no final de 2001, no auge da crise do governo De la Rúa, quando as pessoas manifestavam-se com a raiva e não com o raciocínio. Mas a grande maioria não quer uma revolução, quer uma evolução. Não quer uma mudança de sistema, mas exige justiça, regras de jogo limpo, honestidade. As pessoas estão cansadas da violência. Eu também, que me criei durante a ditadura dos anos 70, prefiro o tempo ao sangue.

PARTICIPAÇÃO
Pablo Trapero -
No primeiro turno, houve um percentual muito pequeno de votos em branco, nulos e de abstenções. É um reflexo muito claro da decisão que tomou o argentino comum de participar e opinar na política. Se você toma um táxi ou vai a um bar, qualquer pessoa é um analista político. Em cada mesa, há alguém que tem uma solução para o país, uma idéia política ou econômica.
Campanella - Não sei por que a imprensa dizia que as pessoas não estavam interessadas. Não se falava de outra coisa. E se falava com um nível de inteligência e de raciocínio que nunca existiu. Nesta eleição, não ouvimos pessoas gritando velhos slogans como "Viva Perón" ou "Vamos, radicais". As pessoas não estavam fanatizadas por ninguém e por nada, mas buscavam analisar as propostas.

RENOVAÇÃO POLÍTICA
Campanella -
Por mais que façamos um esforço de otimismo e de boa vontade para acreditar em Kirchner quando ele diz que quer mudar, a verdade é que ele chega ao poder com o apoio dos mesmos esquemas de sempre. Teria sido preferível que um novo partido tivesse ganho, fosse de esquerda ou de direita. Logo, há uma frustração em relação às expectativas de mudança expressas tão claramente no final de 2001. Mas, no sentido da realidade, é possível que esses partidos novos, alternativos, necessitem de mais quatro anos para se fortalecerem. Nos próximos meses, haverá uma série de eleições e as pessoas, pelo voto, poderão renovar todo o corpo político. Vamos ver se farão isso. No primeiro turno, os radicais [da União Cívica Radical, uma das bases de sustentação do ex-presidente Fernando de la Rúa, que renunciou em dezembro de 2001] praticamente desapareceu, e seus elementos bons formaram novos partidos. Falta que aconteça a mesma coisa com o peronismo, que, esperemos, já esteja a caminho de sua autodestruição.

GOVERNO KIRCHNER
Trapero -
A sensação dos argentinos no momento está entre a incerteza e a esperança. No primeiro turno, houve um desejo claro das pessoas de rechaçar Menem, um esquema político e um modelo de país que levaram a Argentina à situação atual. Mas também há incerteza. Diferentemente do presidente De la Rúa - que chegou à Presidência em 1999 com muito apoio [elegeu-se no primeiro turno com 50,4% dos votos], mas fez um governo contrário ao que as pessoas que votaram nele desejavam-, agora temos um presidente que chega ao poder numa situação de transição para um novo modelo. Kirchner, que perdeu a chance de receber uma grande quantidade de votos, terá legitimidade, mas sofrerá uma pressão muito grande para fazer o que as pessoas querem. Os principais desejos têm a ver com o aumento da produção e das possibilidades de trabalho. Todos estão dispostos a trabalhar, na vida cotidiana e na vida política, para que as coisas melhorem. É claro que os resultados não virão em meses. Mas a população seguirá passo a passo o novo governo.
Campanella - O pior da crise do ano passado era a crise anímica, o sentimento de desmoralização, de que não havia salvação para o país. Agora, percebe-se o início de um otimismo. Não porque estejamos certos de que tudo vai melhorar. Mas porque sabemos o que é necessário para ter a possibilidade de uma melhora. Não diria que estamos vivendo um momento de felicidade. Mas não há mais o profundo desapontamento do ano passado. Foi algo terrível, nunca havia visto nada igual.


A crise trouxe um apequenamento dos indicadores econômicos, mas espiritualmente crescemos muito

SOLIDARIEDADE
Trapero -
Existe agora, na Argentina, a idéia de que as mudanças devem ser feitas no cotidiano, de que cada um deve agir em seu círculo mais próximo. Há uma proposta de construir a partir da soma das mudanças de cada um, de cada pequeno grupo, com o objetivo de obter uma mudança mais global. Isso se traduz em pequenas atitudes, comentários e situações do cotidiano, em coisas quase imperceptíveis. Por exemplo, as pessoas, em suas próprias casas, já separam os restos de papel, papelão etc. para que as pessoas que vivem de juntar esse material já tenham seu trabalho facilitado. Antes, quando alguém mexia no lixo na casa de outra pessoa, essa pessoa provavelmente chamaria a polícia. Pode ser que, em um ano, tudo volte a ser como antes. Ou que surjam novas mudanças. Mas espero que esse comportamento continue.
Campanella - Descobrimos uma grande qualidade em nós mesmos, a possibilidade de sermos solidários. A classe média aqui -e creio que no Brasil também- vivia completamente isolada da classe mais baixa. Era como se vivessem em países diferentes. Embora de forma traumática, a crise colocou a classe média em contato próximo com a classe baixa. Tomamos consciência de que o problema é de todos. Ou nos salvamos todos ou ninguém se salva. A crise trouxe um apequenamento dos indicadores macroeconômicos, mas espiritualmente crescemos muitíssimo. E isso era necessário porque os argentinos eram muito irresponsáveis em relação a seu próprio país.

"BUENA ONDA"
Trapero -
Todo mundo está refletindo sobre o que está acontecendo, como gostaríamos que fosse o mundo, a Argentina. Não é casual que haja um ressurgimento da expressão cultural, inclusive do cinema. Mas isso não quer dizer que a produção cultural se remeta diretamente à crise. As pessoas estão trazendo à tona temas muito pessoais, que estão relacionados com um país em crise, mas que não resultam necessariamente num cinema social e político. Há uma distância entre essa boa fase que vivemos e o cinema político dos anos 70 e 80. A idéia política faz parte da vida cotidiana representada no filme, mas não supera o filme. E os filmes estão mais interessantes como filmes. E isso fez com que houvesse uma aproximação com o público. O público está interessado por temas mais complexos, mas os filmes também estão mais próximos do desejo e da sensibilidade do público.


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