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São Paulo, domingo, 18 de maio de 2003

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TRANSIÇÃO NA ARGENTINA

Bom nível de humor dos argentinos e silêncio da classe média esvaziam, por ora, o protesto que sacudiu o país

Grito "que se vayan todos" fica parado no ar

CLÓVIS ROSSI
ENVIADO ESPECIAL À ARGENTINA

No dia 26, apenas 24 horas depois de Néstor Kirchner assumir a Presidência, a praça de Maio, onde fica a sede do governo, será de novo ocupada pelos "piqueteros", o movimento de desempregados que utiliza o bloqueio de ruas e estradas para dar visibilidade a seus protestos.
O ato do dia 26 é em homenagem a Maximiliano Kosteki e Darío Santillán, líderes "piqueteros" mortos pela polícia em manifestação no dia 26 de junho de 2002. Foram as duas mortes e os consequentes atos de protesto que levaram o presidente Eduardo Duhalde a antecipar as eleições presidenciais para abril/maio, em vez de outubro, a data constitucional.
Significa que o grito "que se vayan todos", alçado pelos "piqueteros", estará de novo na praça histórica antes mesmo que o novo presidente se acomode ao "sillón de Rivadavia", a poltrona presidencial?
Não, pelo menos por enquanto.
Se é verdade que todas as pesquisas indicam que a rejeição aos políticos continua elevadíssima, é igualmente verdade que o "que se vayan todos" parece parado do ar.
Talvez porque o humor do público tenha mudado em relação à sua situação, talvez porque sempre houve diferentes prioridades entre os movimentos de protesto.
Sobre o humor do público: o Índice de Confiança do Consumidor, medido pela Universidade Torcuato di Tella, atingiu nível não muito distante do melhor registro, obtido quando mudou o governo em 1999 (saiu Menem, entrou Fernando de la Rúa).
Chegou, então, a 52,3% o número de argentinos que achavam que sua situação pessoal e a do país estavam melhores. Agora, são 45,2%, o que é extraordinário, se se considerar que a Argentina mal começa a sair de sua mais grave crise econômica e social.

Confluência desfeita
O segundo fator a tirar força do protesto ruidoso vem do fim, ao menos temporário, da confluência entre dois tipos de irritação, o da classe média e o dos pobres.
O movimento de protesto começou, ainda no período Menem, com os "piqueteros", termo de origem militar que significa "pequeno grupo de soldados empregados em algum serviço". Popularizou-se, no entanto, com os piquetes que buscam impedir a entrada de funcionários nas fábricas quando de uma greve.
Estendeu-se, afinal, para os desempregados que bloqueiam estradas ou ruas para tornar mais visível o seu protesto. A reivindicação central do movimento era trabalho e, na impossibilidade de obtê-lo, subvenção oficial.
O governo de Eduardo Duhalde, impotente para gerar emprego, tratou logo de cuidar da segunda hipótese: criou, em janeiro de 2002, o plano "Jefes e Jefas de Hogar" (chefes e chefas de família), uma subvenção de 150 pesos (pouco mais que isso em reais), para desempregados com filhos menores de 18 anos matriculados na escola. Hoje, 2,4 milhões de famílias são atendidas.
Não calou de início o protesto, mas o mitigou, ainda mais que a recessão profunda que a Argentina sofreu por quatro anos começou a ser contida a partir do terceiro trimestre de 2002.
Por extensão, o desemprego parou de aumentar e começa timidamente a declinar.
A prática do clientelismo, viés clássico do peronismo como de todo movimento populista, não foi o único fator a influir na relativa diminuição do grito "que se vayan todos". Entrou também outro clássico: a tentativa de cooptação por uma formidável constelação de partidos de ultra-esquerda, com a consequente defesa de uma agenda absolutamente irrealista.
Cooptação que vale não apenas para o movimento "piquetero", mas também para as Assembléias de Bairros, que se multiplicaram por diferentes cidades a partir da desconfiança com as lideranças políticas convencionais.
No livro "A Las Calles", relato do movimento "piquetero", Aníbal Kohan, do grupo musical popular "Santa Revuelta", lista 31 grupos do gênero, mais micropartidos de esquerda.
Na Assembléia Interbairros Nacional de março de 2002, entre as resoluções aprovadas estava o não-pagamento da dívida externa; "fora o FMI da Argentina"; nacionalização dos bancos e do comércio exterior; reestatização das empresas privatizadas e dos fundos de pensão, "sem indenização"; "nem uma demissão mais".
Justas ou não, são claramente irrealistas. Entre os que pensavam apenas em emprego e salário e os que defendiam uma revolução socialista, o abismo era imenso e, o choque, inevitável.
Descreve-o assim o jornalista Ángel Jozami, no livro "Argentina - A destruição de uma Nação": "O constante choque entre os que vêem nas Assembléias organismos para atender problemas concretos dos bairros e os que a concebem como germes de órgãos de poder de um novo regime está presente desde a sua aparição".

Epopéia ou declínio?
Graciela di Marco, da Universidade Nacional de San Martín, fez um estudo, com outros sociólogos, sobre "Movimentos Sociais Emergentes", no qual diz que há dois enfoques sobre tais manifestações coletivas: a que lhes dá "tons épicos" e a outra que "os considera fenômenos interessantes no seu momento, mas que, atualmente, estão em declínio".
É razoável supor que o "declínio" se acentuará agora que a confluência com a classe média está desaparecendo ou já desapareceu. A classe média se mobilizou por um fator distante de qualquer projeto socialista: tratava-se apenas de reivindicar a devolução dos depósitos bancários trancados pelo chamado "corralito", a retenção do dinheiro nos bancos para evitar a quebra do sistema.
Sete milhões de argentinos ficaram presos no "corralito". Daí a bater panelas e gritar "que se vayan todos" era um passo.
Com o tempo, no entanto, uns foram buscar o dinheiro nos tribunais, outros picharam agências bancárias, mas todos acabaram recebendo de volta, ainda que raramente nas condições que desejavam.
Por isso, o dinheiro está ficando nos bancos mesmo agora que o "corralito" foi eliminado. Dá um bom rendimento, certamente maior do que bater panelas nas ruas.
Desfeita a confluência entre a classe média, com a consequente visibilidade midiática que ela gera, e a massa de desempregados, que continua esperando trabalho ou subsídio, fica mais fácil entender porque Kirchner se atreveu a dizer, quinta-feira, em programa de TV:
"Entro [na Casa Rosada, sede do governo] para ficar quatro anos".
Não deixa, de todo modo, de ser uma frase ousada em um país em que, nos 20 anos de restauração democrática, 3 de seus 5 antecessores não puderam cumprir o juramento de ficar na Casa Rosada pelo prazo legal.


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