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São Paulo, domingo, 18 de maio de 2003

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Desafio é conquistar a "legitimidade de gestão"

DO ENVIADO ESPECIAL A BUENOS AIRES

Mesmo que fosse contratado para marqueteiro de Néstor Kirchner, presidente eleito da Argentina, o publicitário Duda Mendonça não poderia reproduzir a frase "a esperança venceu o medo", achado retórico do PT.
O medo de fato foi derrotado, a julgar por todas as pesquisas. Medo de que voltasse ao poder Carlos Saúl Menem, o presidente cujo modelo criou as bombas de tempo que estouraram no colo de seu sucessor.
Medo tão grande que faz um dos melhores colunistas argentinos, Horácio Verbitsky (do jornal "Página 12"), atribuir a ele o fato de que não se repetiu o voto de protesto que marcou o pleito anterior (as legislativas de 2001).
"O temor do eventual regresso [de Menem] é a explicação necessária e suficiente para a mínima porcentagem de votos nulos ou em branco, tão baixa como nas eleições de 1946, 1952 e 1973, nas quais o justicialismo [peronismo] apresentou como candidato seu líder e fundador" [o general Juan Domingo Perón].
Posto de outra forma: a montanha de votos (em torno de 70%) que todas as pesquisas indicavam que Kirchner obteria no segundo turno não seria dele, mas contra Menem.
Não dá, portanto, para dizer que a esperança venceu o medo. Pesquisa feita nesta semana por Enrique Zuleta Puceiro mostra que o grau de expectativas em relação à gestão Kirchner é muito baixo, o que é coerente com a sua reduzida votação no primeiro turno, que acabou sendo único (22,24%).
Em tese, portanto, o primeiro desafio de Kirchner, com baixa legitimidade de urna, é obter o que dez em dez analistas argentinos batizaram de "legitimidade de gestão". É, de resto, o óbvio. Presidentes só ganham ou perdem popularidade pelo que fazem no governo. A história recente do país é emblemática, no dizer de Mario Wainfeld, do "Página 12":
"Fernando de la Rúa amanheceu com muitos votos e um clima de opinião propício e foi liquefazendo sua legitimidade a uma velocidade espantosa. Eduardo Duhalde nasceu com zero voto, seu prestígio caiu ao segundo subsolo nos primeiros meses de gestão e, em seguida, recuperou-se".
Como Kirchner já anunciou a manutenção de Roberto Lavagna, o ministro da Economia de Duhalde, e como a condução econômica é obviamente a chave, um primeiro tímido passo está dado para a "legitimidade de gestão".
Tudo o mais, no entanto, é de uma complicação formidável, da crise econômica à social.
Primeiro, o calendário eleitoral. Na Argentina, as eleições não são simultâneas, como no Brasil. Haverá eleições para os governos provinciais ao longo do ano e renovação de parte do Congresso em outubro. Só então surgirá a nova cara política do país.
Até lá, Kirchner terá de conviver com a fragmentação do peronismo, que é a maioria relativa na Câmara e absoluta no Senado.
O cancelamento do segundo turno, pela desistência de Menem, impediu que se produzisse um rearranjo no partido. Esperava-se que o vencedor da eleição (um peronista, porque ambos os finalistas eram peronistas) puxasse para o seu lado os seguidores dos dois derrotados (no primeiro turno, concorreu também Adolfo Rodríguez Saá, presidente por uma semana em 2001).
Não é o que está acontecendo. Rodríguez Saá acaba de lançar como corrente autônoma o seu MNyP (Movimento Nacional e Popular).
O bloco "Azul e Branco", criado pelos congressistas ligados a Menem, decidiu manter-se ativo, apesar da renúncia do chefe.
Na prática, é visível que ambos os grupos peronistas esperam a "legitimidade de gestão", ou seja, ver se os primeiros movimentos de Kirchner terão amparo popular para decidir se o apóiam.
É natural na política, embora se possa lamentar: a sorte política individual pesa mais, em geral, do que considerações sobre governabilidade, unidade partidária etc.
Tudo somado, Kirchner terá de operar, na prática, e não no slogan, a demonstração de que é capaz de reinstalar a esperança em uma sociedade que não esconde a baixa auto-estima em que caiu a partir do fracasso de mais uma mágica, a do projeto neoliberal com câmbio fixo de Menem. (CR)


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