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São Paulo, domingo, 18 de maio de 2003

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MÍDIA

Invenção e plágio em reportagens geram debate sobre jornalismo que privilegia o impacto em detrimento da precisão

"Fome pela notícia" põe em xeque o "NYT"

RENATA LO PRETE
DA REPORTAGEM LOCAL

Um ato de contrição como poucas vezes se viu na história do jornalismo americano. Assim um diário concorrente definiu as quatro páginas -mais chamada no alto da capa- em que o "New York Times" reconheceu dezenas de erros e invenções cometidas por um repórter.
A riqueza de detalhes e o destaque foram, no entanto, insuficientes para encerrar o barulho em torno do caso Jayson Blair -por ironia, um nome que traz à lembrança o personagem de "Sexta-Feira 13" e o filme da bruxa.
Uma semana depois de publicada a reportagem com as conclusões da sindicância interna, o que inicialmente foi atribuído a uma "falha de comunicação entre editores" transformou-se em mea culpa da cúpula e agora assombra a credibilidade de um dos jornais de maior prestígio do planeta.
Mesmo diante da sucessão de fraudes registradas na imprensa americana em anos recentes, os feitos de Blair, 27, não deixam de impressionar.
Examinadas as 73 histórias escritas por ele desde outubro do ano passado, 36 continham declarações e personagens fabricados, material plagiado de outros jornais e relatos nos quais o repórter simulava estar em locais onde jamais esteve.
A investigação foi motivada por queixa do "San Antonio Express-News", que bateu à porta do "Times" para mostrar que trechos inteiros de reportagem sobre a família de um soldado desaparecido no Iraque haviam sido copiados do diário texano -inclusive detalhada descrição da casa e entrevista com a mãe do soldado que Blair apresentou como sendo de sua autoria.
Confrontado com as evidências, o jornalista pediu demissão em 1º de maio e até hoje não se manifestou.
Mais do que pela recorrência e ousadia das invenções, o caso chama a atenção pelo nome do jornal que as abrigou. O "Times" vinha assistindo em situação confortável a episódios de fraude que constrangeram boa parte da concorrência -agora compreensivelmente em festa.
Em livro clássico sobre a história e os bastidores do jornal ("O Reino e o Poder", de 1969), Gay Talese descreve o senso de importância de um antigo executivo diante da convicção do público de que "se algo está nas páginas do "New York Times" é porque de fato aconteceu". Não mais. Ou não necessariamente.
"A invenção e o plágio generalizados [nas reportagens de Blair] representam profunda quebra de confiança e um dos piores momentos nos 152 anos do jornal", afirmou o texto de domingo passado.
O responsável, até aí, era um só. "A pessoa que fez isso se chama Jayson Blair", declarou Arthur Sulzberger Jr., "publisher" do "Times" e membro da família que controla o diário. "Não vamos satanizar nossos chefes -sejam os editores ou o editor-executivo ou, se me permitem, o "publisher"."
Mas o discurso não conseguiu estancar as críticas dentro e fora do jornal, centradas na ausência de explicação consistente para sucessivas promoções concedidas a Blair a despeito de um histórico de falhas e ficções.


Ao reconhecer dezenas de erros e invenções cometidas por um repórter, jornal vê sua credibilidade questionada e promove ato de contrição sem precedentes


Trecho da reportagem-sindicância: "Seus erros haviam se tornado tão rotineiros, seu comportamento, tão desprovido de profissionalismo, que em abril de 2002 Jonathan Landman, o editor de Cidades, enviou à cúpula da Redação um e-mail em que dizia: "Temos de impedir que Jayson continue a escrever para o "Times". Já.'"
Em vez disso, Blair foi transferido, depois de uma licença e de algumas advertências, para seção de maior prestígio, a Nacional, na qual o encarregaram de casos de primeira grandeza, como o do atirador de Washington.
O editor não foi avisado do diagnóstico de seu colega de Cidades. Segundo o editor-executivo, Howell Raines, e o secretário de Redação, Gerald Boyd, tentou-se evitar que Blair fosse "estigmatizado" pela nova chefia.
As quatro páginas de explicações tocam apenas de passagem na questão racial -alguns críticos avaliam que Blair, negro como o secretário de Redação e pupilo deste, jamais teria ido tão longe com sua folha corrida se não fosse a política interna de estímulo à contratação de minorias.

Roupa suja
O alcance das repercussões fez com que, três dias depois da reportagem de domingo, a cúpula apresentasse à Redação um discurso bastante diferente.
Realizado em um cinema a poucas quadras da sede do jornal, o encontro foi "fechado à imprensa" -mas relatado em detalhes no dia seguinte por todos os diários, inclusive o "Times".
Raines assumiu responsabilidade pelos danos à imagem do jornal e, na contramão do que havia dito antes, reconheceu que o fator racial pode ter influenciado seu julgamento.
Em um espetáculo tão ou mais inusitado do que a reportagem corretiva, afirmou que estava ali para "ouvir a insatisfação" dos jornalistas. E ouviu por cerca de duas horas.
"Você não pensa em renunciar?", perguntou de saída um repórter. Não. "Vocês [Sulzberger, Raines e Boyd] perderam a confiança de muita gente na Redação", opinou um editor-assistente. A lavagem de roupa suja pode ter contribuído para acalmar os ânimos internos, mas o caso promete ir longe.
Surgem evidências de que as fraudes não se limitaram aos seis meses inicialmente analisados pela comissão de sindicância -Blair trabalhou para o jornal durante quatro anos.
Na sexta-feira, o "Washington Post" publicou relato de uma redatora que forneceu material de apoio para reportagem sobre um "recall" de pneus da Firestone assinada pelo repórter em 2000.
De acordo com ela, a entrevista feita com um consumidor foi totalmente modificada para "esquentar" as acusações à empresa. O jornal diz que vai investigar.
Em defesa de seus procedimentos, Haines alegou ter investido em Blair, apesar dos sinais de perigo, porque ele demonstrava "fome pela notícia".
A nova denúncia deve reforçar a discussão sobre uma cultura jornalística que, até em veículos como o "New York Times", tem privilegiado o impacto em detrimento da consistência e da precisão.


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