São Paulo, domingo, 18 de maio de 2008

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Nova esquerda chinesa rejeita o neoliberalismo

Wang Hui, líder da corrente, defende Estado social

RAUL JUSTE LORES
DE PEQUIM

Em 1968, o maoísmo era moda no mundo. A China vivia o auge da Revolução Cultural, quando "capitalistas e reacionários" eram assassinados ou levados a tribunais públicos de humilhação. Quarenta anos depois, a China se tornou sede do capitalismo mais selvagem do mundo, e Mao está mais presente em souvenirs turísticos do que em debates intelectuais.
Mas isso não quer dizer que a esquerda foi totalmente varrida. Apontado como líder da "nova esquerda" chinesa, o professor de literatura Wang Hui, 48, da Universidade Tsinghua, a segunda mais importante do país, diz que há debates na China críticos ao neoliberalismo. Wang foi editor por nove anos da "Dushu", uma das principais revistas de debates do país, da qual foi demitido no ano passado "por não poder se dedicar em tempo integral".
Leia trechos da entrevista que ele concedeu à Folha por e-mail, da Itália, onde leciona.

 

FOLHA - Ainda existe algum valor que o sr. reconheça da era maoísta na China? O fato de a China rural e os trabalhadores migrantes, o núcleo da revolução, terem sido esquecidos é uma ironia adicional?
WANG HUI
- A abertura chinesa partiu da negação da Revolução Cultural e da reflexão sobre o legado de Mao. Mas muitas conquistas da reforma não podem ser explicadas no quadro do neoliberalismo. Sem o estabelecimento da economia nacional independente, por meio da industrialização anterior à abertura, a reforma urbana da China e o aumento do PIB teriam sido mais difíceis.
Desde o final dos anos 1980, as condições sociais se modificaram drasticamente, com uma ampliação acentuada do desnível social, com o fato resultante de a velha ideologia do Estado (baseada na igualdade) ser cada vez mais contradita pela prática do próprio Estado.
Contra esse pano de fundo, protestos com a participação de trabalhadores e camponeses apelavam ao maoísmo para justificar seus atos sociais. Baseado na necessidade de legitimidade, o Partido Comunista chinês "negou radicalmente" a Revolução Cultural, mas não "negou radicalmente" a revolução chinesa e os valores do socialismo, em especial o pensamento de Mao Tsé-tung. Mas a evocação do legado socialista da China não deve ser entendida como chamado a um retorno ao socialismo de Estado, e sim como maneira de implementar a justiça social. Mesmo para os intelectuais de esquerda, Mao é apenas uma de suas fontes de reflexão.

FOLHA - Existe uma nova esquerda na China que critica as políticas neoliberais do governo? Onde ela está?
WANG
- A esquerda presta mais atenção à relação complexa entre Estado e mercado em vez de tomar partido de um deles segundo um modelo binário, neoliberal. O Estado é um ator do mercado, e o mercado funciona em relação ao Estado.
A mercadização da China ocorre num processo de divisão de poderes. Existem conflitos de interesses entre o governo central, os governos locais e os diferentes departamentos do Estado. Cada ramo do aparato do Estado está conectado aos mercados domésticos e internacionais e a grupos sociais de maneiras intrincadas.
Nesse contexto, o que é preciso não é optar entre livre mercado e intervenção do Estado, mas considerar o relacionamento entre os dois em termos de como a função do Estado muda no ambiente do mercado. Quando os intelectuais da direita lançaram um ataque contra o Estado em nome do mercado, eles esqueceram as transformações pelas quais esse Estado havia passado.
Os intelectuais críticos, ao mesmo tempo em que criticam a idéia neoliberal do recuo do Estado, insistem que o Estado deveria adotar uma agenda social, que a política do Estado deveria mudar de "priorizar a eficiência e cuidar da igualdade" para "priorizar a igualdade e cuidar da eficiência".

FOLHA O que o sr. pensa do conceito de sociedade harmoniosa e das promessas do governo chinês de tentar corrigir as disparidades entre a China urbana e rural?
WANG
- Por um lado, o termo sociedade harmoniosa é usado pelo novo líder do partido para trocar a velha política de desenvolvimento por mais preocupações com igualdade social. Por outro lado, o conceito simboliza o fato de a sociedade estar cada vez mais desarmônica. Será que isso não passa de retórica? Neste momento, não tenho certeza. Desde 2000 têm havido muitas mudanças na política pública; por exemplo, o governo chinês anunciou uma nova política agrícola que inclui a isenção total do imposto agrícola. Também reconheceu o fracasso de seu sistema de assistência médica. Mas a tendência geral e o modo de desenvolvimento não mudaram.

FOLHA - O nacionalismo parece ter tomado o lugar do comunismo e é estimulado pela mídia estatal. Quais são os efeitos do nacionalismo crescente, não apenas o ligado à Olimpíada?
WANG
- É verdade que o governo chinês promove o patriotismo em sua ideologia. No século 20, especialmente para o Partido Comunista, o patriotismo, e não o nacionalismo, tem sido um valor fundamental. Ao mesmo tempo, há uma retomada do interesse pelas tradições chinesas. Mas a sociedade chinesa está muito mais aberta do que em qualquer momento de que me recorde. Na seqüência do desenvolvimento da economia chinesa, os conflitos entre a China e outros países, sobretudo os ocidentais, aumentaram. O movimento estudantil de proteção da tocha olímpica foi defensivo, não agressivo.
Esses movimentos estudantis e sociais não são controlados pelo governo. Mesmo em 1989, uma das reivindicações do movimento estudantil era ser reconhecido pelo governo como patriótico. Obviamente, aquele foi um movimento pela democracia e justiça social.

FOLHA - Embora alguns se queixem da disparidade entre ricos e pobres na China, poucos discutem a possibilidade de democratização. A democracia foi completamente adiada, mesmo pela academia?
WANG
- Em muitos países terceiro-mundistas, a democracia formal é resultado de uma aliança da elite; falta um mecanismo para a participação social genuína. Portanto, algumas pessoas desiludidas desistiram da idéia de democracia. Mas argumento que a chave para essa questão está em ampliar o significado da democracia para contextos sociais concretos, em lugar de enxergar a democracia como um formato pronto e passível de ser reproduzido.
A agenda neoliberal muito freqüentemente entra em choque com a democracia participativa, que é inevitavelmente vinculada a movimentos sociais que lutam pela autoproteção no ambiente da expansão do mercado. Por exemplo, o movimento de trabalhadores por segurança no trabalho e direitos trabalhistas, o movimento de algumas organizações para proteger o ambiente. Os movimentos sociais exercem um papel decisivo na ampliação dos direitos democráticos.

FOLHA - A causa da sua demissão da "Dushu" não é convincente. O espaço para a discussão diminuiu?
WANG
- Fui editor-chefe da "Dushu" por quase uma década, o que me possibilitou organizar muitas discussões sobre política, economia, cultura e questões mundiais. Obviamente, algumas delas mexeram em nervos sensíveis. Não apenas o governo, mas também alguns grupos de interesses especiais não gostam de ver debates sendo travados. Realmente, a desculpa não é convincente.
Existem muitas censuras na China, especialmente na mídia.
Mas a existência de censura não significa necessariamente que não exista espaço público. Até na mídia controlada é possível encontrar algumas discussões delicadas. No mundo acadêmico a censura não se dá do mesmo modo. Os acadêmicos podem ter seu espaço próprio para pesquisas e ensino.
A censura vem se despolitizando; você não verá uma campanha política, no sentido da época de Mao. Minha saída da "Dushu" foi um exemplo. Ao mesmo tempo, ela não vem apenas do governo, mas também dos grupos de interesse, incluindo seus agentes nos governos e na mídia.


NA INTERNET
www.folha.com.br/081376
Leia a íntegra da entrevista



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