|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Nova esquerda chinesa rejeita o neoliberalismo
Wang Hui, líder da corrente, defende Estado social
RAUL JUSTE LORES
DE PEQUIM
Em 1968, o maoísmo era moda no mundo. A China vivia o
auge da Revolução Cultural,
quando "capitalistas e reacionários" eram assassinados ou
levados a tribunais públicos de
humilhação. Quarenta anos depois, a China se tornou sede do
capitalismo mais selvagem do
mundo, e Mao está mais presente em souvenirs turísticos
do que em debates intelectuais.
Mas isso não quer dizer que a
esquerda foi totalmente varrida. Apontado como líder da
"nova esquerda" chinesa, o professor de literatura Wang Hui,
48, da Universidade Tsinghua,
a segunda mais importante do
país, diz que há debates na China críticos ao neoliberalismo.
Wang foi editor por nove
anos da "Dushu", uma das principais revistas de debates do
país, da qual foi demitido no
ano passado "por não poder se
dedicar em tempo integral".
Leia trechos da entrevista que
ele concedeu à Folha por e-mail, da Itália, onde leciona.
FOLHA - Ainda existe algum valor
que o sr. reconheça da era maoísta
na China? O fato de a China rural e
os trabalhadores migrantes, o núcleo da revolução, terem sido esquecidos é uma ironia adicional?
WANG HUI - A abertura chinesa
partiu da negação da Revolução
Cultural e da reflexão sobre o
legado de Mao. Mas muitas
conquistas da reforma não podem ser explicadas no quadro
do neoliberalismo. Sem o estabelecimento da economia nacional independente, por meio
da industrialização anterior à
abertura, a reforma urbana da
China e o aumento do PIB teriam sido mais difíceis.
Desde o final dos anos 1980,
as condições sociais se modificaram drasticamente, com
uma ampliação acentuada do
desnível social, com o fato resultante de a velha ideologia do
Estado (baseada na igualdade)
ser cada vez mais contradita
pela prática do próprio Estado.
Contra esse pano de fundo,
protestos com a participação
de trabalhadores e camponeses
apelavam ao maoísmo para justificar seus atos sociais. Baseado na necessidade de legitimidade, o Partido Comunista chinês "negou radicalmente" a Revolução Cultural, mas não "negou radicalmente" a revolução
chinesa e os valores do socialismo, em especial o pensamento
de Mao Tsé-tung.
Mas a evocação do legado socialista da China não deve ser
entendida como chamado a um
retorno ao socialismo de Estado, e sim como maneira de implementar a justiça social. Mesmo para os intelectuais de esquerda, Mao é apenas uma de
suas fontes de reflexão.
FOLHA - Existe uma nova esquerda
na China que critica as políticas neoliberais do governo? Onde ela está?
WANG - A esquerda presta
mais atenção à relação complexa entre Estado e mercado em
vez de tomar partido de um deles segundo um modelo binário, neoliberal. O Estado é um
ator do mercado, e o mercado
funciona em relação ao Estado.
A mercadização da China
ocorre num processo de divisão
de poderes. Existem conflitos
de interesses entre o governo
central, os governos locais e os
diferentes departamentos do
Estado. Cada ramo do aparato
do Estado está conectado aos
mercados domésticos e internacionais e a grupos sociais de
maneiras intrincadas.
Nesse contexto, o que é preciso não é optar entre livre
mercado e intervenção do Estado, mas considerar o relacionamento entre os dois em termos de como a função do Estado muda no ambiente do mercado. Quando os intelectuais da
direita lançaram um ataque
contra o Estado em nome do
mercado, eles esqueceram as
transformações pelas quais esse Estado havia passado.
Os intelectuais críticos, ao
mesmo tempo em que criticam
a idéia neoliberal do recuo do
Estado, insistem que o Estado
deveria adotar uma agenda social, que a política do Estado
deveria mudar de "priorizar a
eficiência e cuidar da igualdade" para "priorizar a igualdade
e cuidar da eficiência".
FOLHA O que o sr. pensa do conceito de sociedade harmoniosa e das
promessas do governo chinês de
tentar corrigir as disparidades entre
a China urbana e rural?
WANG - Por um lado, o termo
sociedade harmoniosa é usado
pelo novo líder do partido para
trocar a velha política de desenvolvimento por mais preocupações com igualdade social. Por
outro lado, o conceito simboliza o fato de a sociedade estar
cada vez mais desarmônica.
Será que isso não passa de retórica? Neste momento, não tenho certeza. Desde 2000 têm
havido muitas mudanças na
política pública; por exemplo, o
governo chinês anunciou uma
nova política agrícola que inclui a isenção total do imposto
agrícola. Também reconheceu
o fracasso de seu sistema de assistência médica. Mas a tendência geral e o modo de desenvolvimento não mudaram.
FOLHA - O nacionalismo parece ter
tomado o lugar do comunismo e é
estimulado pela mídia estatal.
Quais são os efeitos do nacionalismo crescente, não apenas o ligado à
Olimpíada?
WANG - É verdade que o governo chinês promove o patriotismo em sua ideologia. No século
20, especialmente para o Partido Comunista, o patriotismo, e
não o nacionalismo, tem sido
um valor fundamental. Ao mesmo tempo, há uma retomada
do interesse pelas tradições
chinesas. Mas a sociedade chinesa está muito mais aberta do
que em qualquer momento de
que me recorde. Na seqüência
do desenvolvimento da economia chinesa, os conflitos entre
a China e outros países, sobretudo os ocidentais, aumentaram. O movimento estudantil
de proteção da tocha olímpica
foi defensivo, não agressivo.
Esses movimentos estudantis e sociais não são controlados
pelo governo. Mesmo em 1989,
uma das reivindicações do movimento estudantil era ser reconhecido pelo governo como
patriótico. Obviamente, aquele
foi um movimento pela democracia e justiça social.
FOLHA - Embora alguns se queixem da disparidade entre ricos e pobres na China, poucos discutem a possibilidade de democratização. A
democracia foi completamente
adiada, mesmo pela academia?
WANG - Em muitos países terceiro-mundistas, a democracia
formal é resultado de uma
aliança da elite; falta um mecanismo para a participação social genuína. Portanto, algumas
pessoas desiludidas desistiram
da idéia de democracia. Mas argumento que a chave para essa
questão está em ampliar o significado da democracia para
contextos sociais concretos, em
lugar de enxergar a democracia
como um formato pronto e passível de ser reproduzido.
A agenda neoliberal muito
freqüentemente entra em choque com a democracia participativa, que é inevitavelmente
vinculada a movimentos sociais que lutam pela autoproteção no ambiente da expansão
do mercado. Por exemplo, o
movimento de trabalhadores
por segurança no trabalho e direitos trabalhistas, o movimento de algumas organizações para proteger o ambiente. Os movimentos sociais exercem um
papel decisivo na ampliação
dos direitos democráticos.
FOLHA - A causa da sua demissão
da "Dushu" não é convincente. O espaço para a discussão diminuiu?
WANG - Fui editor-chefe da
"Dushu" por quase uma década, o que me possibilitou organizar muitas discussões sobre
política, economia, cultura e
questões mundiais. Obviamente, algumas delas mexeram em
nervos sensíveis. Não apenas o
governo, mas também alguns
grupos de interesses especiais
não gostam de ver debates sendo travados. Realmente, a desculpa não é convincente.
Existem muitas censuras na
China, especialmente na mídia.
Mas a existência de censura
não significa necessariamente
que não exista espaço público.
Até na mídia controlada é possível encontrar algumas discussões delicadas. No mundo acadêmico a censura não se dá do
mesmo modo. Os acadêmicos
podem ter seu espaço próprio
para pesquisas e ensino.
A censura vem se despolitizando; você não verá uma campanha política, no sentido da
época de Mao. Minha saída da
"Dushu" foi um exemplo. Ao
mesmo tempo, ela não vem
apenas do governo, mas também dos grupos de interesse,
incluindo seus agentes nos governos e na mídia.
NA INTERNET
www.folha.com.br/081376
Leia a íntegra da entrevista
Texto Anterior: Ásia é hoje último refúgio do maoísmo Próximo Texto: Frases Índice
|