São Paulo, domingo, 18 de junho de 2006

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EUA remoem dúvidas sobre destino de sua supremacia

Novos livros questionam excepcionalidade do "império da liberdade" após o ufanismo militarista que se seguiu ao 11 de Setembro

CLAUDIA ANTUNES
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

DE CAMBRIDGE (EUA)

NO MEIO do redemoinho criado pela politização do islamismo e do crescimento de China e Índia no cenário internacional, afirmam acadêmicos, os EUA precisam reestruturar a visão autobenevolente que rege seu senso histórico -no qual apenas acertos são registrados- e reexaminar as raízes e o foco de seu imperialismo. Para esses estudiosos que traçam perspectivas de como a hiperpotência conseguirá manter sua hegemonia, o império americano pode até contar com a condescendência que vem amparada em um excesso de paliativos e justificativas desses tempos de guerra contra o terror. Mas ainda constitui a melhor das alternativas em um mundo que se rearranja

William Jennings Bryan (1860-1925), um dos mais eloqüentes oradores da história americana, está de volta após um longo ostracismo. O político derrotado em três tentativas de chegar à Casa Branca tem sido lembrado pelo discurso em que denunciou a ocupação das Filipinas. Pronunciado em 1900, "A Influência Paralisante do Imperialismo" foi a primeira grande peça retórica de denúncia do império -não o britânico, o americano- nos EUA.
Jennings Bryan é o "Godly Hero" (herói devoto) da obra do historiador Michael Kazin. Kazin foca a mistura de radicalismo antielite e fervor religioso que o democrata imprimiu à política. Mas as ambigüidades do pacifismo de Bryan, que apoiou a guerra contra a Espanha (1898) antes de criticar a colonização das Filipinas, somam sua biografia à safra de livros e artigos em que os americanos remoem a natureza e o destino de sua hegemonia.
Império informal, império a convite, império consensual, império indireto. Nos EUA, a palavra "saiu do armário", nas palavras do neoconservador Charles Krauthammer, depois do 11 de Setembro, quando a "hiperpotência" dos anos 90 declarou oficialmente sua supremacia. Multiplicaram-se, também, os atenuantes que a qualificam, justificados em termos conceituais ou pela excepcionalidade do "império para a liberdade" evocado já há 200 anos por Thomas Jefferson, terceiro presidente americano.
Os limites dessa excepcionalidade são o foco de alguns livros recentes, depois de uma série de textos entusiasmados. Afinal, escreveu o historiador inglês e professor da Universidade de Nova York Tony Judt, mesmo que fosse demonstrado que a hegemonia americana foi benéfica a todos, "seus supostos beneficiários no resto do mundo ainda a rejeitariam".

Ação cívica
Charles S. Maier, professor de história na Universidade Harvard, diz que escreveu "Among Empires" (entre impérios) como uma "ação cívica". "Os americanos têm esse mito da benevolência, e queria que se dessem conta de que não somos tão excepcionais. Impérios são uma formação recorrente e há características que compartilhamos. Isso não significa que todo império seja igual, mas também não significa que Abu Ghraib ou Guantánamo sejam exceções", diz, citando a prisão iraquiana onde soldados americanos abusaram de detentos e a base militar em Cuba onde os EUA mantêm os prisioneiros de sua guerra contra o terror.
No livro, Maier define impérios como "uma forma de organização política em que os elementos sociais que governam no Estado dominante criam uma rede de elites aliadas no exterior que aceitam a subordinação em questões internacionais em troca de segurança em sua unidade administrativa".
A definição é elástica o suficiente para incluir os EUA, mas o professor não fecha questão sobre o caráter da primazia americana. Prefere relativizar a posição, defendida pelo historiador e também professor de Harvard Niall Ferguson, de que impérios liberais tendem a disseminar instituições favoráveis ao desenvolvimento.
"Como os impérios dizem respeito a elites, também dizem respeito a estratificação e desigualdades. Quando havia um império do mal eu poderia estar grato a um império do bem, mas não temos mais isso. O problema é que os americanos decidiram que o terrorismo islâmico é um novo fascismo que só pode ser combatido com políticas imperiais", diz Maier.
Autor de "The New American Militarism" (o novo militarismo americano), Andrew Bacevich, coronel reformado do Exército e professor de relações internacionais da Universidade de Boston, vai na mesma linha. "Temos uma falsa consciência histórica", diz. "O século 20 da cabeça da maioria dos americanos são os EUA se erguendo em defesa da liberdade e derrotando os terríveis nazistas e comunistas. Atribuímos tudo de positivo a nós e tudo de negativo aos outros."
O impacto dessa memória seletiva é o tema de "Empire Workshop" (laboratório do império), de Greg Grandin. No livro, o professor da Universidade de Nova York argumenta que a coalizão por trás do que chama de "imperialismo revolucionário" do governo Bush, reunindo cristãos evangélicos e neoconservadores, já estava em ação nas guerras sujas do governo Reagan (1981-1989) contra a ameaça esquerdista na América Central.
"Em busca de precedentes para o momento atual, os intelectuais evocam a reconstrução da Alemanha e do Japão no pós-guerra, Roma e a Grã-Bretanha do século 19, mas ignoram o único lugar em que os EUA projetaram sua influência por mais de dois séculos", diz.

"Desordem mundial"
Em "Colossus, the Rise and Fall of the American Empire" (Colosso, a ascensão e queda do império americano), publicado há dois anos, Niall Ferguson previa que a supremacia dos EUA seria substituída não por uma "harmonia multipolar", mas por uma "desordem mundial" (leia entrevista ao lado).
Maier discorda: "Acho que acabaremos num tipo de equilíbrios regionais, a União Européia, a China, a Índia, os EUA".
Bacevich, igualmente, vê exageros na "guerra ao terror" e na perspectiva de uma guerra fria contra China. "O islã político é profundamente antiamericano, mas minha intuição é que ele fracassará por suas próprias mãos. A China já é uma grande potência, vai se tornar mais poderosa ainda e terá interesses que vão conflitar com os nossos. Mas historicamente nunca foi uma nação que tenha se proposto a controlar o mundo."
Em seus livros, Bacevich relaciona a expansão do poder americano à economia política doméstica. O novo militarismo, diz, surgiu nos anos 70 como uma resposta ao "derrotismo" provocado pela Guerra do Vietnã e a crise econômica dos 60. A "quarta guerra mundial", afirma, começou depois da primeira crise do petróleo, quando o acesso seguro ao combustível virou prioridade dos EUA.
"Apesar disso só ter ficado evidente nos anos 90, mudanças na política e nas prioridades militares converteram o golfo Pérsico no epicentro da Grande Estratégia Americana", afirma.
Mas tanto Bacevich quanto Maier identificam o serviço militar voluntário e o endividamento como freios ao exercício de uma política imperial. "Temos um Exército de aluguel", diz Maier. "Há um fosso entre nossas ambições militares e o número de reservistas. Além disso, sob a prosperidade há várias tendências inquietantes. Devemos US$ 1,3 trilhão. Vivemos de empréstimos de outros países", afirma Bacevich.
O professor de Harvard não vê lideranças à altura desses desafios. "Os democratas não tomam posição por uma política externa e de segurança alternativa. John Kerry era incoerente. Hillary Clinton não parece disposta. O Congresso não exerce influência. Todo mundo quer se mostrar mais duro que os outros. É pouco saudável."


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