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HISTÓRIAS DE UMA GUERRA
Folha acompanha retorno, em carroças, de família de kosovares de origem albanesa a suas casas em Kosovo
Vila festeja a volta dos seus refugiados
KENNEDY ALENCAR
enviado especial a Kosovo
"Olhe, lá fica a
nossa vila!", grita Hampi Rexhepi, 63, para a
neta Elhame, 11.
Os dois começam a chorar. O
patriarca está
alegre. A garota, com medo. "É o
dia mais feliz da minha vida", diz
Hampi. "Me sinto mal, assustada"
são as únicas palavras de Elhame.
Viajam na primeira das duas carroças que são puxadas a 20 km/h
por um velho trator iugoslavo IMT
533. Às 11h, estão a 12 km da vila de
Gadimlje, de onde foram expulsos
havia exatamente dois meses.
Às 2h de ontem, 24 pessoas da família Rexhepi (sobrenome tão comum em Kosovo quanto Silva no
Brasil) deixaram Kukes, Albânia, a
cerca de 120 km de suas casas. A
Folha viajou na carroça deles nas
duas últimas horas do trajeto.
Viveram num campo de refugiados sob responsabilidade dos italianos. "Ouvi dizer que estava seguro, que a Otan e o ELK controlavam as estradas do sul, e resolvi
voltar", diz Hampi, justificando a
decisão de não ter esperado a ajuda da Acnur (Alto Comissariado
das Nações Unidas para Refugiados) para retornar a Kosovo.
Até avistarem a vila, todos riam e
acenavam para os carros na estrada. Depois, choravam frequentemente. De tristeza e de alegria.
Bejtush Rexhepi, 35, filho de
Hampi, está na segunda carroça
com as quatro filhas, a mulher e
mais três sobrinhos. Relata que
sérvios chegaram à sua vila ao
meio-dia de 17 de abril."Vocês têm
até as 15h para ir embora", repete a
ordem que recebeu e levou ao pai.
Hampi diz que, na manhã daquele dia, cerca de 60 pessoas expulsas da vila de Slovia foram mortas por paramilitares sérvios num
descampado a 2 km de onde morava: "Estavam vestidos de preto.
Acho que eram os "Tigres de Arkan" (grupo paramilitar liderado
pelo extremista sérvio "Arkan"
acusado de atrocidades contra civis na Guerra da Bósnia, 92-95)".
"Fui até lá e vi com meus olhos",
diz. Mais tarde, vizinhos de Hampi
repetiriam à Folha a história, com
os mesmos detalhes. Segundo ele,
civis de Slovia foram mortos por
terem escondido guerrilheiros do
ELK (Exército de Libertação de
Kosovo). Teriam sido levados da
cidade e mortos como exemplo.
De acordo com Hampi, tropas do
Exército iugoslavo, que chegaram
depois da chacina, falaram que as
famílias poderiam buscar os corpos para enterrar. "Disseram que
iriam descobrir os autores. É claro
que sabiam e não puniram."
Bejtushi diz que viajaram das 15h
de 17 de abril até as 14h30 do dia seguinte, sem comida ou dinheiro.
"No caminho, sérvios diziam que,
se desejássemos viver, não deveríamos voltar nunca mais."
Ao entrar em Gadimlje, às 11h40,
Hampi é recebido como um herói.
"Você está vivo?! Você é o primeiro
(refugiado) a voltar para nossa vila", surpreende-se um amigo.
Hampi pede que ele guarde bem as
palavras e repita sempre e bem alto
que ele "foi o primeiro a voltar".
Todos choram nas duas carroças. Sebahate, 19, filha de Hampi,
soluça e amamenta Malesore, que
ainda não têm quatro meses. "Ela
sofreu muito de bronquite. Quase
morreu na viagem", diz, chorando,
ao lembrar o frio que sentiram na
madrugada da fuga.
Bejtushi dá dois beijos no rosto
dos amigos. Um deles, com o uniforme do ELK, empresta o fuzil
Kalashinikov para que dispare. "É
um costume nosso, para comemorar", diz Hampi, que também pede
para dar o seu tiro.
Sentem-se seguros. O Exército de
Libertação de Kosovo, a guerrilha
separatista albanesa, montou um
posto bem na entrada da vila. Deixam com o ELK a bandeira da Albânia (vermelha com uma águia
negra no centro) que balançaram
durante toda a viagem.
Hampi e Bejtushi não sabem como vão encontrar as quatro casas
no terreno de 36 mil m2 (o equivalente a cinco campos de futebol)
onde trabalham como agricultores. "Suas perguntas me confundiram. Antes, estava feliz. Mas agora
estou com medo do que vou encontrar".
Olhando as outras casas da vila,
que tinha cerca de 8.000 habitantes
antes da guerra e agora está com
2.000, suas chances são boas. Na
comparação com outras vilas que
beiram as estradas principais, há
pouca destruição, mas muita sujeira. Poucas casas estavam avariadas. Algumas delas, queimadas.
Quando se aproximam de casa,
não suportam a ansiedade. Bejtushi, mulheres e crianças maiores
pulam do trator e correm. Ele chega e procura um fuzil que escondeu no mato. Sua mulher, Xhemile, corre para checar a casa. Hampi
procura pela irmã Fikrije Azemi.
Bejtushi dá uma rajada de tiros
para o alto. Continua chorando.
Depois, passa a arma para o sobrinho, que não tem mais do que 15
anos, mas já sabe colocar o cartucho de munição e disparar.
Xhemile encontra a frente da casa queimada, a porta arrombada,
duas janelas quebradas e parte do
telhado danificado. O fedor da geladeira, desligada e com restos de
comida, é insuportável. Dentro da
casa, está tudo revirado.
A TV e o receptor de satélite foram roubados, como outros eletrodomésticos. Uma vizinha fala
que paramilitares dormiram em
sua cama, onde há cheiro de urina.
No banheiro, há fezes até na pia.
Hampi abraça a irmã. "Achei que
nunca mais ia te ver", diz ela.
"Agradeço à Otan, que nos salvou,
aos italianos, que nos deram comida. Mas eu estava morto naquele
campo (de refugiados). Agora,
nasci de novo", diz Hampi.
Recebe a notícia de que três sobrinhos em segundo grau foram
mortos. O mais velho, de 27 anos,
era do ELK. Chora como criança e
pede para não ser fotografado.
Diz que não quer vingança. Fala
que não liga para os danos na propriedade (além da destruição e do
roubo, sumiram oito de suas dez
vacas), mas que não entende por
que seu ""povo foi massacrado".
Diz que todos os sérvios pensam
o mesmo: querem todos de sua etnia mortos. "É bom que partam.
Do fundo do coração, nunca poderei perdoá-los", diz, sobre os sérvios que estão deixando Kosovo.
Enquanto Hampi vivia o dia que
pensou que nunca chegaria, refugiados sérvios experimentavam o
que ele sofrera. Poucos depois de
Gadimlje, a estrada para Pristina
está engarrafada.
Dezenas de carroças, semelhantes às da família Rexhepi, tinham
uma sorte melhor, porém. Deixavam Kosovo escoltadas por veículos blindados da Otan -que não
estavam na Província quando
ocorreu o êxodo albanês.
A viagem do jornalista Kennedy Alencar é parcialmente custeada pela editora DBA
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