São Paulo, Sexta-feira, 18 de Junho de 1999
Próximo Texto | Índice

HISTÓRIAS DE UMA GUERRA
Folha acompanha retorno, em carroças, de família de kosovares de origem albanesa a suas casas em Kosovo
Vila festeja a volta dos seus refugiados

KENNEDY ALENCAR
enviado especial a Kosovo


"Olhe, lá fica a nossa vila!", grita Hampi Rexhepi, 63, para a neta Elhame, 11. Os dois começam a chorar. O patriarca está alegre. A garota, com medo. "É o dia mais feliz da minha vida", diz Hampi. "Me sinto mal, assustada" são as únicas palavras de Elhame.
Viajam na primeira das duas carroças que são puxadas a 20 km/h por um velho trator iugoslavo IMT 533. Às 11h, estão a 12 km da vila de Gadimlje, de onde foram expulsos havia exatamente dois meses.
Às 2h de ontem, 24 pessoas da família Rexhepi (sobrenome tão comum em Kosovo quanto Silva no Brasil) deixaram Kukes, Albânia, a cerca de 120 km de suas casas. A Folha viajou na carroça deles nas duas últimas horas do trajeto.
Viveram num campo de refugiados sob responsabilidade dos italianos. "Ouvi dizer que estava seguro, que a Otan e o ELK controlavam as estradas do sul, e resolvi voltar", diz Hampi, justificando a decisão de não ter esperado a ajuda da Acnur (Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados) para retornar a Kosovo.
Até avistarem a vila, todos riam e acenavam para os carros na estrada. Depois, choravam frequentemente. De tristeza e de alegria.
Bejtush Rexhepi, 35, filho de Hampi, está na segunda carroça com as quatro filhas, a mulher e mais três sobrinhos. Relata que sérvios chegaram à sua vila ao meio-dia de 17 de abril."Vocês têm até as 15h para ir embora", repete a ordem que recebeu e levou ao pai.
Hampi diz que, na manhã daquele dia, cerca de 60 pessoas expulsas da vila de Slovia foram mortas por paramilitares sérvios num descampado a 2 km de onde morava: "Estavam vestidos de preto. Acho que eram os "Tigres de Arkan" (grupo paramilitar liderado pelo extremista sérvio "Arkan" acusado de atrocidades contra civis na Guerra da Bósnia, 92-95)".
"Fui até lá e vi com meus olhos", diz. Mais tarde, vizinhos de Hampi repetiriam à Folha a história, com os mesmos detalhes. Segundo ele, civis de Slovia foram mortos por terem escondido guerrilheiros do ELK (Exército de Libertação de Kosovo). Teriam sido levados da cidade e mortos como exemplo.
De acordo com Hampi, tropas do Exército iugoslavo, que chegaram depois da chacina, falaram que as famílias poderiam buscar os corpos para enterrar. "Disseram que iriam descobrir os autores. É claro que sabiam e não puniram."
Bejtushi diz que viajaram das 15h de 17 de abril até as 14h30 do dia seguinte, sem comida ou dinheiro. "No caminho, sérvios diziam que, se desejássemos viver, não deveríamos voltar nunca mais."
Ao entrar em Gadimlje, às 11h40, Hampi é recebido como um herói. "Você está vivo?! Você é o primeiro (refugiado) a voltar para nossa vila", surpreende-se um amigo. Hampi pede que ele guarde bem as palavras e repita sempre e bem alto que ele "foi o primeiro a voltar".
Todos choram nas duas carroças. Sebahate, 19, filha de Hampi, soluça e amamenta Malesore, que ainda não têm quatro meses. "Ela sofreu muito de bronquite. Quase morreu na viagem", diz, chorando, ao lembrar o frio que sentiram na madrugada da fuga.
Bejtushi dá dois beijos no rosto dos amigos. Um deles, com o uniforme do ELK, empresta o fuzil Kalashinikov para que dispare. "É um costume nosso, para comemorar", diz Hampi, que também pede para dar o seu tiro.
Sentem-se seguros. O Exército de Libertação de Kosovo, a guerrilha separatista albanesa, montou um posto bem na entrada da vila. Deixam com o ELK a bandeira da Albânia (vermelha com uma águia negra no centro) que balançaram durante toda a viagem.
Hampi e Bejtushi não sabem como vão encontrar as quatro casas no terreno de 36 mil m2 (o equivalente a cinco campos de futebol) onde trabalham como agricultores. "Suas perguntas me confundiram. Antes, estava feliz. Mas agora estou com medo do que vou encontrar".
Olhando as outras casas da vila, que tinha cerca de 8.000 habitantes antes da guerra e agora está com 2.000, suas chances são boas. Na comparação com outras vilas que beiram as estradas principais, há pouca destruição, mas muita sujeira. Poucas casas estavam avariadas. Algumas delas, queimadas.
Quando se aproximam de casa, não suportam a ansiedade. Bejtushi, mulheres e crianças maiores pulam do trator e correm. Ele chega e procura um fuzil que escondeu no mato. Sua mulher, Xhemile, corre para checar a casa. Hampi procura pela irmã Fikrije Azemi.
Bejtushi dá uma rajada de tiros para o alto. Continua chorando. Depois, passa a arma para o sobrinho, que não tem mais do que 15 anos, mas já sabe colocar o cartucho de munição e disparar.
Xhemile encontra a frente da casa queimada, a porta arrombada, duas janelas quebradas e parte do telhado danificado. O fedor da geladeira, desligada e com restos de comida, é insuportável. Dentro da casa, está tudo revirado.
A TV e o receptor de satélite foram roubados, como outros eletrodomésticos. Uma vizinha fala que paramilitares dormiram em sua cama, onde há cheiro de urina. No banheiro, há fezes até na pia.
Hampi abraça a irmã. "Achei que nunca mais ia te ver", diz ela. "Agradeço à Otan, que nos salvou, aos italianos, que nos deram comida. Mas eu estava morto naquele campo (de refugiados). Agora, nasci de novo", diz Hampi.
Recebe a notícia de que três sobrinhos em segundo grau foram mortos. O mais velho, de 27 anos, era do ELK. Chora como criança e pede para não ser fotografado.
Diz que não quer vingança. Fala que não liga para os danos na propriedade (além da destruição e do roubo, sumiram oito de suas dez vacas), mas que não entende por que seu ""povo foi massacrado".
Diz que todos os sérvios pensam o mesmo: querem todos de sua etnia mortos. "É bom que partam. Do fundo do coração, nunca poderei perdoá-los", diz, sobre os sérvios que estão deixando Kosovo.
Enquanto Hampi vivia o dia que pensou que nunca chegaria, refugiados sérvios experimentavam o que ele sofrera. Poucos depois de Gadimlje, a estrada para Pristina está engarrafada.
Dezenas de carroças, semelhantes às da família Rexhepi, tinham uma sorte melhor, porém. Deixavam Kosovo escoltadas por veículos blindados da Otan -que não estavam na Província quando ocorreu o êxodo albanês.


A viagem do jornalista Kennedy Alencar é parcialmente custeada pela editora DBA

Próximo Texto: Mortos podem ser 10 mil, diz Londres
Índice

Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.