São Paulo, domingo, 19 de fevereiro de 2006

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ARTIGO

O sumo sacerdote do sigilo ainda dá as cartas nos EUA

RUPERT CORNWELL
DO "INDEPENDENT"

Para começo de conversa, como gostam de dizer os americanos, atirar num amigo por engano e depois manter silêncio sobre o fato por quatro dias é o menor dos pecados que podem ser atribuídos ao vice-presidente dos EUA, Dick Cheney.
Consideremos algumas de suas intervenções mais relevantes nos últimos anos. Cheney foi o obsessivo arquiteto da Guerra do Iraque, que pode ficar na história como o maior erro isolado de política externa dos EUA da última metade de século. Ele fez mais do que qualquer outro para alimentar a fantasia das armas de destruição em massa. Resistiu até o final à renúncia anunciada pela administração Bush ao emprego de técnicas de interrogatório brutais, com isso conquistando para si o epíteto de "vice-presidente da tortura".
Do mesmo modo, Cheney vem sendo o mais aberto defensor dos grampos telefônicos, provavelmente ilegais, realizados pela Agência de Segurança Nacional. Em último lugar, mas não menos importante, foi seu chefe-de-gabinete, Lewis Libby, que foi indiciado no caso do vazamento de informações sobre a CIA -e parece ter sido Cheney que "encorajou" seu assessor a vazar informações sigilosas sobre o Iraque a jornalistas selecionados, após a invasão, para reforçar as informações fantasiosas, que já vinham sendo desacreditadas, sobre as tais armas de destruição em massa. E nem sequer mencionamos a Halliburton, a empresa que Cheney dirigiu e já lucrou tanto com a ocupação do Iraque.
Em matéria de listas de acusações políticas, essa é considerável -e, com certeza, são acusações sobre atos que tiveram conseqüências muito mais graves do que matar algumas codornas e, acidentalmente, descarregar em um colega de caça o conteúdo de um pente de balas de calibre 28.
Não, a razão pela qual a excursão malfadada em um rancho texano exerce tamanho fascínio é outra. O homem que puxou o gatilho não é um vice-presidente qualquer. Dick Cheney é o homem mais poderoso a ter ocupado esse cargo na história moderna dos EUA -ou, melhor dizendo, em toda a história do país.
Cheney formou um gabinete que opera como uma Casa Branca paralela. Mais ainda do que seu patrão nominal, ele é o grande defensor da autoridade do Executivo. Um dos ingredientes do poder Executivo irrestrito é o sigilo, e Dick Cheney vem sendo o sumo sacerdote do sigilo no ramo mais sigiloso do governo do qual se tem memória.
Algo que chamou minha atenção mais de uma vez nesta semana, na medida em que sou jornalista com experiência em trabalhar em Moscou, foram as semelhanças desconcertantes entre a administração americana atual e o Politburo soviético de anos atrás.
"Você não sabe de nada, mas compreende tudo", costumávamos dizer, fazendo referência ao Kremlin. Algo semelhante se passa hoje em Washington. É claro que os EUA não são um Estado totalitário. Mas alguns aspectos da Casa Branca atual -o desdém que ela dedica ao Congresso e à imprensa, que beira o desprezo, sua mania incansável de apresentar tudo sob sua versão própria e tendenciosa, a supressão que faz das visões contrárias à sua (sobre o aquecimento global, por exemplo)-, soam estranhamente familiar.
A diferença é que o Kremlin mandava prender seus dissidentes ou então os internava em hospitais psiquiátricos. A turma de Bush e Cheney apenas os ignora.
Para os democratas, é claro, Cheney é o co-autor -de quem não se pode cobrar responsabilidade- de todos os desastres que a Casa Branca de Bush já infligiu ao país.
E, para os estrangeiros, Cheney se tornou a personificação de tudo o que não gostam nos EUA. Seu olhar duro e desdenhoso, o pouco caso que manifesta em relação a organismos internacionais incômodos, como a ONU, fizeram dele uma caricatura do moderno "Americano Feio".
Então, o que pode ser feito com esse vice-presidente problemático, ainda mais impopular do que seu patrão? Até mesmo o ultraleal George W. Bush já deixou transparecer o incômodo sentido com a demora em Cheney de vir a público sobre o que aconteceu. Encorajados com isso, alguns sonhadores começaram a pedir que Cheney renuncie. Mas o mundo terá que engolir seu desapontamento. A realidade é que a posição do vice é inexpugnável.
A menor das razões disso é que, apesar de todas suas falhas, Cheney personifica o único trunfo forte que os republicanos vão carregar com eles para as eleições delicadas: a percepção que se tem de que possuem capacidade superior de caçar os terroristas e garantir a segurança do país.
Muito mais importante, porém, é a influência que Cheney exerce. Colocar o vice de escanteio, mesmo utilizando o disfarce de seus supostos problemas cardíacos, constituiria confissão de erro da parte de Bush, algo que vai contra a própria natureza do presidente. Foi por isso que Bush manteve Donald Rumsfeld no Pentágono, apesar de Abu Ghraib. E é por isso que ele vai manter Dick Cheney como vice.


Tradução de Clara Allain


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