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ARTIGO
O sumo sacerdote do sigilo ainda dá as cartas nos EUA
RUPERT CORNWELL
DO "INDEPENDENT"
Para começo de conversa, como
gostam de dizer os americanos,
atirar num amigo por engano e
depois manter silêncio sobre o fato por quatro dias é o menor dos
pecados que podem ser atribuídos ao vice-presidente dos EUA,
Dick Cheney.
Consideremos algumas de suas
intervenções mais relevantes nos
últimos anos. Cheney foi o obsessivo arquiteto da Guerra do Iraque, que pode ficar na história como o maior erro isolado de política externa dos EUA da última metade de século. Ele fez mais do que
qualquer outro para alimentar a
fantasia das armas de destruição
em massa. Resistiu até o final à renúncia anunciada pela administração Bush ao emprego de técnicas de interrogatório brutais, com
isso conquistando para si o epíteto de "vice-presidente da tortura".
Do mesmo modo, Cheney vem
sendo o mais aberto defensor dos
grampos telefônicos, provavelmente ilegais, realizados pela
Agência de Segurança Nacional.
Em último lugar, mas não menos
importante, foi seu chefe-de-gabinete, Lewis Libby, que foi indiciado no caso do vazamento de informações sobre a CIA -e parece
ter sido Cheney que "encorajou"
seu assessor a vazar informações
sigilosas sobre o Iraque a jornalistas selecionados, após a invasão,
para reforçar as informações fantasiosas, que já vinham sendo desacreditadas, sobre as tais armas
de destruição em massa. E nem
sequer mencionamos a Halliburton, a empresa que Cheney dirigiu e já lucrou tanto com a ocupação do Iraque.
Em matéria de listas de acusações políticas, essa é considerável
-e, com certeza, são acusações
sobre atos que tiveram conseqüências muito mais graves do
que matar algumas codornas e,
acidentalmente, descarregar em
um colega de caça o conteúdo de
um pente de balas de calibre 28.
Não, a razão pela qual a excursão malfadada em um rancho texano exerce tamanho fascínio é
outra. O homem que puxou o gatilho não é um vice-presidente
qualquer. Dick Cheney é o homem mais poderoso a ter ocupado esse cargo na história moderna
dos EUA -ou, melhor dizendo,
em toda a história do país.
Cheney formou um gabinete
que opera como uma Casa Branca
paralela. Mais ainda do que seu
patrão nominal, ele é o grande defensor da autoridade do Executivo. Um dos ingredientes do poder
Executivo irrestrito é o sigilo, e
Dick Cheney vem sendo o sumo
sacerdote do sigilo no ramo mais
sigiloso do governo do qual se
tem memória.
Algo que chamou minha atenção mais de uma vez nesta semana, na medida em que sou jornalista com experiência em trabalhar em Moscou, foram as semelhanças desconcertantes entre a
administração americana atual e
o Politburo soviético de anos
atrás.
"Você não sabe de nada, mas
compreende tudo", costumávamos dizer, fazendo referência ao
Kremlin. Algo semelhante se passa hoje em Washington. É claro
que os EUA não são um Estado
totalitário. Mas alguns aspectos
da Casa Branca atual -o desdém
que ela dedica ao Congresso e à
imprensa, que beira o desprezo,
sua mania incansável de apresentar tudo sob sua versão própria e
tendenciosa, a supressão que faz
das visões contrárias à sua (sobre
o aquecimento global, por exemplo)-, soam estranhamente familiar.
A diferença é que o Kremlin
mandava prender seus dissidentes ou então os internava em hospitais psiquiátricos. A turma de
Bush e Cheney apenas os ignora.
Para os democratas, é claro,
Cheney é o co-autor -de quem
não se pode cobrar responsabilidade- de todos os desastres que
a Casa Branca de Bush já infligiu
ao país.
E, para os estrangeiros, Cheney
se tornou a personificação de tudo o que não gostam nos EUA.
Seu olhar duro e desdenhoso, o
pouco caso que manifesta em relação a organismos internacionais
incômodos, como a ONU, fizeram dele uma caricatura do moderno "Americano Feio".
Então, o que pode ser feito com
esse vice-presidente problemático, ainda mais impopular do que
seu patrão? Até mesmo o ultraleal
George W. Bush já deixou transparecer o incômodo sentido com
a demora em Cheney de vir a público sobre o que aconteceu. Encorajados com isso, alguns sonhadores começaram a pedir que
Cheney renuncie. Mas o mundo
terá que engolir seu desapontamento. A realidade é que a posição do vice é inexpugnável.
A menor das razões disso é que,
apesar de todas suas falhas, Cheney personifica o único trunfo
forte que os republicanos vão carregar com eles para as eleições delicadas: a percepção que se tem de
que possuem capacidade superior de caçar os terroristas e garantir a segurança do país.
Muito mais importante, porém,
é a influência que Cheney exerce.
Colocar o vice de escanteio, mesmo utilizando o disfarce de seus
supostos problemas cardíacos,
constituiria confissão de erro da
parte de Bush, algo que vai contra
a própria natureza do presidente.
Foi por isso que Bush manteve
Donald Rumsfeld no Pentágono,
apesar de Abu Ghraib. E é por isso
que ele vai manter Dick Cheney
como vice.
Tradução de Clara Allain
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