São Paulo, domingo, 19 de fevereiro de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ORGULHO RUSSO

Com minissérie, diretor quer "desocidentalizar" obra-chave de seu país celebrizada em filme de Hollywood em 1965

Rússia produz versão própria de "Dr. Jivago"

ANDREW OSBORN
DO "INDEPENDENT", EM MOSCOU

A Rússia está tentando reaver algo que Hollywood roubou de seu cânone literário há mais de 40 anos: acaba de produzir a primeira versão nacional para a tela da épica história de amor e revolução de Boris Pasternak, "Dr. Jivago".
Para corrigir o que os russos vêem como diversas imprecisões culturais e de estilo no grande sucesso dirigido em 1965 por David Lean para o estúdio MGM, uma minissérie com 11 capítulos foi produzida em Moscou com alguns dos melhores atores russos. Deve começar a ir ao ar em maio.
A idéia é "desocidentalizar" um dos únicos três romances russos a ter valido a seus autores um Prêmio Nobel de literatura e proporcionar ao público russo contemporâneo uma visão autêntica de uma obra proibida pelas autoridades comunistas até o final dos anos 1980.
Para muitos no Ocidente, o filme americano "original", feito com grande orçamento, definiu o que era a Rússia: neve, românticos passeios de trenó, paisagens majestosas, música folclórica sedutora e revolução. Quarenta anos mais tarde, porém, os russos argumentam que Lean errou feio em muitas coisas, senão em todas. Embora vejam com tolerância o célebre filme do diretor britânico, feito com dinheiro americano e que ganhador de cinco Oscar, os russos são irredutíveis ao dizer que foi uma versão peculiarmente ocidental de uma obra literária essencialmente russa.
No filme de Hollywood, Omar Sharif faz o papel do protagonista, o médico e poeta Yuri Jivago, filho de uma família siberiana rica que luta para encontrar o amor contra o pano de fundo brutal da Revolução Russa de 1917 e da guerra civil entre Vermelhos e Brancos que se seguiu a ela.
O elenco estelar incluía Julie Christie no papel de Lara, uma das duas mulheres que Jivago ama, Geraldine Chaplin, Rod Steiger, Alec Guinness e Ralph Richardson. A trilha sonora de Maurice Jarre, inspirada em Tchaikovsky, e especialmente o recorrente "Tema de Lara" fincaram raízes na imaginação de toda uma geração, pelo menos no Ocidente. O filme, com mais de três horas de duração, foi aclamado como um dos melhores de Lean.
Mas para Aleksander Proshkin, diretor da primeira versão russa de "Dr. Jivago", o filme de Hollywood erra em inúmeros detalhes.
"É um filme americano belíssimo que pertence à época em que foi feito", disse, em referência à versão de Lean. "Mas é americano. Não retrata a realidade da Rússia. É a Rússia vista através de olhos anglo-saxões. Na verdade, não é russo nem é Pasternak."
Proshkin observou, por exemplo, a incongruência do uso repetido da balalaica, instrumento musical camponês russo, na trilha sonora do filme, quando se leva em conta que a família Jivago era milionária e fazia parte da mais alta classe social russa.
"Ela [a balalaica] não tem lugar na vida de milionários. É como se fizéssemos um filme sobre a Ásia mostrando um presidente que toca banjo. Seria errado."
E Proshkin observa que as casas de campo da Sibéria não têm cúpulas ornamentadas em formato de cebola, como mostra o filme de Hollywood. Mas o que realmente falta ao filme americano, diz, é um retrato autêntico da alma ou do estado de espírito russos. "É como quando um de nossos atores faz o papel de um americano ou britânico. Existem certas coisas que não podem ser captadas."
Proshkin observa que, ironicamente, a personagem Lara não era a heroína russa clássica que Hollywood mostrou na tela, mas filha de pai belga e mãe francesa, fato que a tornava "diferente" e "mais livre".
O diretor faz questão de não desprezar o filme de Hollywood, observando que foi feito em plena Guerra Fria, quando a Rússia era praticamente fechada a estrangeiros. Por esse motivo, foi rodado na Espanha e na Finlândia, em lugar de Moscou e Sibéria.
A escala e o orçamento da produção russa, protagonizada por Oleg Menshikov, um dos atores mais queridos no país, não se comparam ao filme de Hollywood. Mas Proshkin tem a certeza de ter criado um "Dr. Jivago" mais fiel ao original.
"Este é o romance-chave para entender a Rússia", diz. "Com "O Don Silencioso" [Mikhail Cholokhov] e "O Arquipélago Gulag" [Alexandre Soljenitsin], é um dos três romances russos a ganhar o Nobel. Não é o melhor ou o mais perfeito dos romances, mas toda a Rússia está representada nele."


Tradução de Clara Allain


Texto Anterior: Artigo - Rupert Cornwell: O sumo sacerdote do sigilo ainda dá as cartas nos EUA
Próximo Texto: Artigo - Mary Dejevsky: Russos recuperam sua auto-estima
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.