São Paulo, domingo, 19 de março de 2006

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Da esperança ao caos em três anos

Palco de um conflito sectário que deixa dezenas de mortos por dia, o Iraque nunca esteve tão perto de uma guerra civil quanto neste terceiro aniversário da invasão. E os EUA nunca estiveram tão longe de tirar seus soldados do país

LUCIANA COELHO
DA REDAÇÃO

Não havia armas de destruição em massa, mas um ditador sangüinário caiu. Uma democracia foi implantada, mas nem em suas mesquitas os iraquianos estejam salvos de bombas. Houve eleições livres, porém nenhum governo tomou posse por não haver consenso para formá-lo. A guerra acabou. Mas a carnificina, não.
Amanhã vão se completar três anos desde que os EUA invadiram o Iraque. Numa cronologia de paradoxos, em que prós e contras figuram em simbiose, nunca os iraquianos estiveram tão próximos de mergulhar em uma guerra civil. Para alguns observadores, essa guerra já começou.
A população que em março de 2003 se viu livre de um regime violento agora está às voltas com rixas mais antigas que o próprio país. Saddam Hussein, um árabe sunita, conseguiu manter essas tensões latentes por 24 anos sob o preço da repressão violenta da maioria árabe xiita e dos iraquianos de etnia curda. Sem sua figura intimidadora, com a chegada dos xiitas ao poder por meio de eleições diretas, e alimentadas pela possibilidade de a antiga classe dominante perder o acesso aos ricos campos de petróleo do país, as rivalidades ferveram. Acabaram por explodir junto com uma mesquita xiita em Samarra, alvo de um atentado em fevereiro.
Desde então, é razoável estimar que mais de mil iraquianos tenham morrido em ataques sectários. Corpos torturados aparecem em estradas e becos pelo país com uma freqüência aterradora.
Os EUA não pareciam esperar tal turbilhão, ou ao menos não tinham plano para isso, embora especialistas tenham feito alertas nos meses anteriores e subseqüentes à guerra. Em maio de 2003, o presidente George W. Bush discursou sob uma faixa em que se lia "missão cumprida".
A retórica de exaltação dos sucessos pontuais é mantida com veemência pelo presidente ainda hoje, em um esforço por reconquistar o apoio do público -quase 80% dos americanos crêem hoje que o Iraque caminha para a guerra civil. Falácia, ingenuidade ou erro de cálculo, o fato é que eles pouco têm a celebrar amanhã.
As tropas estão atoladas no país -retirá-las neste momento, em que as forças iraquianas ainda são pouco experientes e coesas, pode significar o empurrão derradeiro para o abismo. Dificilmente o plano de começar a trazer o contingente de mais de 130 mil de volta neste ano será levado a cabo. A mal-ajambrada coalizão que apoiou os EUA na invasão a despeito da desaprovação da ONU esfacelou. Mesmo os britânicos começam a trazer seus homens de volta. E até os ideólogos neoconservadores que supriram de argumentos os presidente agora renegam Bush e sua insistência.
A situação saiu de tal forma de controle que a Casa Branca decidiu recorrer ao Irã, com o qual cortou laços diplomáticos há 27 anos, para discutir uma saída para a crise. Nos primórdios da ocupação, o maior temor dos EUA era uma "iranização" do Iraque -que o país de tradição laica, mas habitado por uma maioria xiita como seu vizinho, se tornasse uma teocracia. Agora, as vozes mais poderosas e capazes de conter um conflito em escala maior pertencem aos clérigos.
Consolidado o cenário, o Iraque pode se tornar uma ameaça à segurança global muito maior do que Bush acusava antes da guerra.


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