São Paulo, sexta-feira, 19 de maio de 2006

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AMÉRICA LATINA

Biografia lançada no Brasil traz retrato íntimo e da vontade de "transcendência" do presidente da Venezuela

Chávez investiu para ser líder, diz biógrafa

RAUL JUSTE LORES
DA REPORTAGEM LOCAL

Diante de um personagem tão polarizador, amado e odiado com igual grau de histeria, a biografia "Hugo Chávez sem uniforme" (ed. Gryphus) foi elogiada em críticas desde o "The New York Times" ao diário da esquerda argentina "Página/12". Os autores -o casal venezuelano formado pela jornalista Cristina Marcano e o escritor Alberto Barrera- viveram no México entre 1996 e 2002, ficando de fora da eleição do ex-coronel e do golpe contra ele.
A proposta de escrever a biografia nasceu justamente do braço mexicano da editora Random House/Mondadori. Ambos voltaram à Venezuela, e durante dois anos, até o final de 2004, pesquisaram a vida do presidente, há sete anos no poder. Entrevistaram, em sua maioria, pessoas que conviveram com ele. O resultado chegou às livrarias brasileiras ontem. Marcano e Barrera estarão na semana que vem no Rio de Janeiro para participar do seminário "As transformações contemporâneas na América do Sul".
Leia a seguir os principais trechos da entrevista que Marcano deu à Folha.
 

Folha - Quando Chávez começou a ter vontade de ser o líder da América Latina?
Cristina Marcano -
Sua ambição pessoal é de transcender a história. Ele não quer ser apenas um presidente a mais. E quer fazer história na América Latina. Agora, ele só pôde se projetar graças ao preço do petróleo. Os antecessores dele viveram com um barril de petróleo a US$ 8 ou 16. A US$ 70, ele pode gastar muito.
Ele é o presidente latino-americano que mais investiu tempo e dinheiro para se tornar um líder na região. Damos petróleo e investimos em vários vizinhos mais pobres. Fazemos negócios e acordos que são sempre prejudiciais à Venezuela.

Folha - E sua transformação em ícone global?
Marcano -
Ele aprendeu isso na Venezuela. Os seus eleitores adoram vê-lo se confrontando com os poderosos. "Finalmente alguém se atreve", dizem. Brigar com ricos, empresários, juízes, a igreja. Ao criticar o presidente dos EUA, George W. Bush, ganha admiração. Ele diz o que muitos pensam. Quem vai querer defender Bush? Quando chama Bush de "assassino" ganha manchetes.

Folha - No livro, a sra. diz que Chávez não se considerava nem de esquerda, nem de direita, em sua primeira campanha, e que apenas se dizia bolivariano. Quando foi sua transformação?
Marcano -
Ele já tinha idéias de esquerda. Mas, na campanha eleitoral de 1998, foi satanizado como comunista. E ele ocultou isso. O panorama no continente mudou, e ele nunca esteve tão forte. Mas os esquerdistas venezuelanos não o consideram de esquerda. Acham que ele é um populista, que manteve o capitalismo de sempre, a dependência dos EUA, paga disciplinadamente ao FMI. Não houve revolução.

Folha - O empresariado venezuelano apoiou Chávez quando ele concorreu pela primeira vez. Por que houve a ruptura?
Marcano -
Os empresários quiseram se impor, e Chávez deixou claro que quem manda é ele, impôs distância. Mas quem atirou a primeira pedra foi Chávez. Começou a bater nos ricos e viu que lhe rendia popularidade. A retórica lhe deu muitos inimigos. Mas, hoje, o empresariado fez as pazes com ele. Eles querem fazer negócios com o governo, que está cheio de dinheiro do petróleo. Muitos, que antes eram opositores, hoje abaixam a cabeça e se beneficiam economicamente.
Um caso emblemático é o de Gustavo Cisneros. Chávez o acusava de ser um dos cabeças do golpe de 2002. Só que hoje a Venevisión, canal de TV de Cisneros, elogia o governo. Esses grandes empresários sempre querem estar com quem vai ganhar. Só que eles subestimaram Chávez e sua independência. Pensavam que seria uma marionete, dócil, que pudessem manejá-lo. Mas não há ninguém menos dócil que Chávez.

Folha - A Venezuela esperava um Chávez?
Marcano -
Em 200 anos de história, só tivemos 40 anos de governos civis. No país, o homem forte é importante. Até os anos 30, tínhamos 3 milhões de habitantes. A maior parte da população do país nasceu e se formou sob a idéia de que fomos escolhidos pela providência para morar em um território onde jorra petróleo. Somos milionários sem precisar trabalhar, e alguém precisa distribuir esse dinheiro.

Folha - Chávez é tão brigão pessoalmente?
Marcano -
Quase todos o retratam como um homem muito simpático, afetuoso no trato, cativante. Mas, como chefe, e como presidente, é conhecido pelo trato duro, castrense, um general. Com sua equipe é na base do "eu mando, você obedece". Apesar de seu incrível talento de comunicação, ele não pode controlar sua contrariedade diante de qualquer crítica. É intolerante. Não tem experiência como político civil, em negociar com gente diferente, construir consensos. Do golpe e da prisão, ele foi para a Presidência.

Folha - Com mais poder e mais dinheiro, Chávez mudou muito?
Marcano -
O sucesso subiu à sua cabeça. Ele se sente um dos homens mais poderosos do mundo, que não tem limites. Apesar de bem calculista, nota-se que ele já não cuida tanto do impacto de suas palavras no exterior. Ele disse que se Alan García vencer no Peru, romperá relações com o país. E isso só ajudou García. Essa intromissão mostra que ele anda meio cego pela vaidade.

Folha - Os defeitos de Chávez são bem conhecidos. Quais são suas maiores virtudes?
Marcano -
Ele é muito perseverante e um grande comunicador. Sabe afinar a sintonia com os mais pobres, comover o povo. Sabe até como desarmar os opositores. Nunca se dá por vencido. E tem preocupações sociais autênticas, desde os 19 anos.

Folha - Os programas sociais de Chávez são bons?
Marcano -
Dizem que tem muita corrupção, movimentam milhões de dólares, sem prestação de contas. Pode ser, não investiguei isso. Mas, na minha opinião, os pobres da Venezuela precisavam muito disso. Quando não se tem nenhum médico perto de casa, ter um médico cubano por perto é muito importante. Principalmente em um país onde crianças morrem de diarréia. Há venda de alimentos subsidiados nas favelas.


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