São Paulo, Domingo, 19 de Setembro de 1999
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RUÍNAS DO IMPÉRIO
"Transição" ao capitalismo na verdade é uma "grande depressão", diz relatório da ONU
Estudo mostra declínio da ex-URSS

LUIS PRADOS
do "El País"

O escândalo de corrupção na Rússia que veio à tona nas últimas semanas focalizou a atenção internacional mais uma vez sobre a desastrosa situação política, econômica e social da antiga URSS e, por extensão, de boa parte dos países do antigo bloco soviético.
Os políticos de Washington cunharam a expressão "cleptocracia oligárquica" para definir o regime vigente na nova Rússia. O próprio diretor do FMI, Michel Camdessus, acaba de definir a raiz do problema com precisão um tanto quanto atrasada.
"Não percebemos que o desmantelamento do aparato comunista era o desmantelamento do Estado", disse. "Contribuímos para criar um deserto institucional numa cultura de fraude, economia informal e pilhagem dos privilégios do comunismo."
A análise de Camdessus é quantificada e ampliada em informe recente do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento sobre o custo humano que a transição para o capitalismo teve nesta década para os países da Europa Oriental, a Rússia e as antigas Repúblicas soviéticas.
O relatório começa assinalando que o termo "transição" "é um eufemismo usado para designar algo que, na realidade, é uma grande depressão". E conclui dizendo que essa transição "tem sido literalmente letal para a maioria das pessoas nesses países".
As exceções são a Polônia, a República Tcheca, a Eslovênia, a Hungria e os países bálticos, que vêm assentando as bases para uma economia mais eficiente. Mas o fracasso tem sido a norma na maioria dos países, especialmente entre os da região com população maior -como Rússia e Ucrânia-, onde, segundo o relatório, "mais de 100 mil pessoas foram atiradas à pobreza".
A catástrofe humana é ainda maior porque seu ponto de partida, apesar da total falta de liberdade e de participação política dos países, era bom em termos de segurança do emprego, renda e acesso à educação e à saúde.
O relatório da ONU divide o custo humano da transição em sete partes: a queda vertiginosa na expectativa de vida, que, no caso da população masculina da Rússia, caiu de 62 para 58 anos entre 1980 e 1995; o aumento da taxa de mortalidade, vinculado ao crescimento de doenças como a Aids e a sífilis (cuja incidência se multiplicou por 15 na ex-URSS) e o ressurgimento de outras antes erradicadas, como a tuberculose, a poliomielite e a difteria; o empobrecimento da população, com suas sequelas de desnutrição, anemia, órfãos, suicídios (o índice atual de suicídios na região é três vezes mais alto do que o da União Européia) e consumo de álcool e drogas; o aumento marcante da desigualdade entre ricos e pobres e entre homens e mulheres; a destruição do sistema de ensino (com cortes orçamentários de 50%) e o aumento do desemprego, que é superior a 10% na maioria dos países, com índices de 30% na Moldova.
Segundo o relatório, essas são algumas das consequências sociais derivadas de decisões econômicas catastróficas, como a "liberalização imediata e indiscriminada dos preços" (ao contrário do "processo seletivo e gradual adotado na China e no Vietnã"), que gerou uma espiral hiperinflacionária na maioria dos países da região, com índices acima dos 1.000% anuais em 15 deles.
A explosão dos preços se deu em meio à proliferação de guerras civis -Tadjiquistão, Geórgia, Armênia, Azerbaijão, Tchetchênia-, que deixaram milhões de refugiados e deslocados e um ambiente de falta total de competitividade, herdado do comunismo.
Os monopólios públicos recém-privatizados aproveitaram essa circunstância para "elevar preços e explorar sua posição dominante no mercado". Tudo isso se traduziu em enormes déficits públicos, na redução drástica do crescimento econômico -o PIB da ex-URSS, em 1997, foi pouco mais da metade do de 1990-, numa queda de mais de um terço nos investimentos, na contração do mercado de trabalho, na ascensão da economia clandestina e na redução dos salários.
O caso da Moldova ilustra a perda enorme do poder aquisitivo da população. Segundo o informe, "a capacidade de compra de um salário médio de 1997, na Moldova, equivalia à de 1967".
O relatório destaca que, no conjunto dos países do ex-bloco soviético, a parcela da população que vive abaixo do nível de pobreza subiu de 4%, em 1988, para 32% em 1994 -de 13,6 milhões de pessoas para 119,2 milhões. Essa queda foi acompanhada, entre outros males, pela desnutrição de crianças e mulheres -65% das mulheres de 15 a 50 anos de idade no Uzbequistão sofreram anemia em 1994-, pelo raquitismo infantil, pelo aumento dos abortos e pelo crescimento vertiginoso dos crimes ligados às drogas.
A ONU avalia o impacto demográfico desse conjunto de calamidades pelo desaparecimento de 9,7 milhões de homens das estatísticas populacionais, sobretudo na Rússia e na Ucrânia. São pessoas que teriam sobrevivido se não tivesse ocorrido "uma deserção política do Estado" e se o Império Soviético não tivesse se desfeito num oceano de caos.


Tradução de Clara Allain


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