São Paulo, quinta-feira, 19 de setembro de 2002

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EUROPA

Maurice Papon, 92, o mais célebre criminoso de guerra francês, foi solto por legislação que impede prisão de idosos

França solta Papon, ex-colaborador nazista

JOHN LICHFIELD
DO ""THE INDEPENDENT", EM PARIS

Durante sua longa carreira como funcionário do Estado francês, Maurice Papon sempre foi meticuloso -até mesmo entusiástico- na aplicação que fez do texto das leis.
Quer estivesse redigindo orçamentos para Valéry Giscard d'Estaing, nos anos 1970, ou arrebanhando judeus para o regime de Vichy e os nazistas, na década de 1940, Papon serviu com dedicação e zelo a seus senhores, independentemente de quem fossem.
Ontem, uma lei francesa aprovada há seis meses veio resgatar Papon, 92, depois de ele ter cumprido apenas três anos de uma pena de dez à qual foi condenado por ""cumplicidade em crimes contra a humanidade" por colaborar com os nazistas na Segunda Guerra. O mais célebre criminoso de guerra francês ainda vivo foi libertado de sua cela na penitenciária de La Santé, em Paris, por motivos de saúde, e autorizado a retornar para sua residência no campo.
Seus advogados disseram que a saúde de Papon é incompatível com a vida na prisão. Sob os termos de uma nova lei sobre a proteção dos idosos, o tribunal de apelações de Paris decidiu que não tinha outra opção senão ordenar a libertação de Papon.
Em questão de horas, Papon deixou a prisão -aos gritos de ""assassino!" dos transeuntes- e foi levado de carro, por um de seus advogados, até sua residência em Gretz-Armainvilliers, a 64 km da capital.
A decisão dos juízes de apelação foi inesperada, embora os termos da nova lei sejam muito claros, só permitindo exceções se um preso idoso e doente constituir ""grave risco à ordem pública".
Os grupos de direitos humanos e associações de familiares das vítimas do Holocausto ficaram chocados com a decisão da corte.
A libertação de Papon não representa uma nova disposição da França de perdoar ou apagar a memória do tratamento dado aos judeus pelo regime de Vichy. Liderada por Jacques Chirac, a França avançou muito, nos últimos anos, no sentido de reconhecer e procurar expiar a perseguição aos judeus movida pelo Estado francês colaboracionista entre 1940 e 1944.
Houve a conspiração do silêncio que se manteve durante os anos 1950 e 1960, aprovada pelo próprio general Charles de Gaulle, que permitiu que dezenas de altos funcionários do regime de Vichy sobrevivessem e prosperassem na administração francesa do pós-guerra.
Maurice Papon -que, em 1943-44, quando pressentiu o rumo que a guerra estava tomando, transferiu sua lealdade para a resistência contra a ocupação nazista- foi um beneficiário típico dessa política. Em consequência disso, Papon, após a guerra, chegou a tornar-se chefe da polícia de Paris e, mais tarde, ministro das Finanças no governo de Giscard d'Estaing, entre 1978 e 1981.
O segundo grande escândalo foi a corrida de obstáculos políticos e judiciais erguida para ajudar Papon depois que suas atividades durante a guerra foram descobertas. Foram necessários 17 anos para levar Papon a julgamento, devido a uma ação de retaguarda movida em seu favor.
Seu julgamento, que se arrastou por seis meses em 1997 e 1998 -o mais demorado julgamento do pós-guerra na França-, foi uma agonia. Perto do final, Papon, uma figura alta e aristocrática, fez um pedido de desculpas bastante frio, mas, durante quase o julgamento todo, manteve-se firme em sua linha de defesa.
Disse que não tivera outra escolha senão cumprir as ordens do governo de Vichy, que fizera o possível para salvar o maior número possível de judeus e que não tivera idéia, na época, de que os trens carregados de pessoas detidas, que rumavam inicialmente para o norte da França, tinham como destino último os campos de extermínio.
O tribunal aceitou sua defesa em relação a esse último ponto, de modo que Papon foi considerado inocente da acusação de assassinato. Mas foi julgado culpado de ""cumplicidade em crimes contra a humanidade".
As provas documentais indicavam que Papon, na época o subprefeito da região de Bordeaux, fez pouco para ajudar os judeus. Os parentes de suas vítimas rezavam para que ele sobrevivesse para cumprir sua pena na íntegra.


Tradução de Clara Allain


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